quinta-feira, 11 de setembro de 2008

"Linha de Passe"



A invisibilidade é de duas mãos: insufilme nos vidros dos carros e nas viseiras dos capacetes

DESDE QUE assisti a "Linha de Passe", de Walter Salles e Daniela Thomas, os personagens do filme crescem na minha memória e parecem cada vez mais familiares, mais próximos de mim.
É curioso, pois eles habitam um mundo distante do meu. "Linha de Passe" conta a história de quatro irmãos (de pais diferentes), que vivem com a mãe (que espera um quinto filho), na Cidade Líder, zona leste de São Paulo. A mãe é empregada doméstica (a maravilhosa Sandra Corveloni, prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes). Um dos irmãos é frentista e evangélico. Outro, de peneira em peneira, sonha em se tornar jogador de futebol. Outro é motoboy e já tem um filho com uma menina que ele visita de vez em quando. O último seria estudante se não estivesse sempre viajando de ônibus, à procura do pai, que é ou foi motorista de uma viação paulistana.

Conhecendo esse resumo (e sem ter visto o filme), um colega, que tem um certo preconceito contra o cinema brasileiro, perguntou: "Mas por que nunca fazem um filme sobre pessoas que nem a gente? Motoboy, frentista, empregada doméstica, futebol como redenção: como é que vou reconhecer minha vida nesses estereótipos da pobreza nacional?".

Pois é, este é o milagre de "Linha de Passe": o filme é sobre "pessoas que nem a gente" porque nunca é "pitoresco". Como assim?

O "pitoresco" é uma prática estética que começou no século 18, na Inglaterra. Consistia em transformar paisagens potencialmente sinistras (por exemplo, as ruínas, caras aos primeiros românticos) em pinturas "graciosas", que pudessem ser penduradas em cima da lareira. Logo, o mesmo aconteceu com miseráveis e mendigos: inventou-se um jeito de pintá-los de tal maneira que, enternecedores ou monstruosos, mas sempre "recreativos", pudessem adornar as habitações de nobres e burgueses. Esses novos enfeites eram um bálsamo para a consciência: "Sou do bem, tenho um mendigo na sala". Para obter o efeito pitoresco, não se trata de amenizar a diferença do sujeito representado. Ao contrário, é melhor exagerar essa diferença, de forma que a miséria, a deformidade, a abjeção, por parecerem tão distantes, sejam "divertidas", e não tocantes: o grotesco é um tipo de pitoresco.

O pitoresco, em suma, aproxima falsamente, garantindo que o outro pintado permanecerá outro: uma vinheta caricata. O debate sobre a "estetização" da miséria no cinema brasileiro é, aliás, a continuação da antiga discussão contra ou a favor do "pitoresco".

Voltemos a "Linha de Passe". Suas personagens vivem numa São Paulo especialmente sóbria, muito diferente daquelas belezas naturais do Brasil que, vistas da janela afavelada ou do casebre, podem tornar pitoresca qualquer miséria.

O roteiro escolhe uma família pobre e sem pai, mas não indigente nem desunida. Também por isso, talvez, nos altos e baixos, nas brigas, nas alegrias, nos fracassos e nas incertezas morais dos protagonistas, a pobreza seja, por assim dizer, acidental: suas vidas nos tocam não pela condição social, mas por serem vidas de nossos semelhantes.

Chama-se linha de passe uma roda em que os jogadores devem passar a bola entre si sem que ela toque no chão. É uma versão do "ninguém se salva sozinho": se a peteca cai, todos perdem -é preciso jogar não contra, mas com e para os outros. E saí do filme pensando que a linha de passe não era só entre os irmãos da Cidade Líder. Há uma linha de passe que nos inclui.

Originalmente, o filme seria o primeiro de dois, filmados na seqüência. No segundo, as personagens centrais seriam as figuras de classe média que atravessam marginalmente, por um instante, a vida dos protagonistas do primeiro longa. De fato, o conjunto de filmes teria sido um marco.

Numa cena de "Linha de Passe", um dos irmãos, que desliza para o crime, acaba seqüestrando um motorista em cujo carro ele trombou ao fugir da polícia. Na cena, tensa e dramática, o jovem pede à sua vítima que olhe para ele, para ser visto. Como observou, num e-mail, um leitor e espectador do filme, Tomas Rosenfeld, o jovem tampouco percebe sua vítima (ele agride, aliás, quem o ajudou a se levantar).

O motoqueiro que se apresta a quebrar o vidro de um carro enxerga apenas uma bolsa, não o motorista -assim como o motorista no farol, ao ver surgir uma moto de seu lado, enxerga apenas a ameaça. A invisibilidade é uma via de duas mãos: insulfilm nos vidros dos carros e nas viseiras dos capacetes.

3 comentários:

  1. Oi, Contardo, poderia me falar mais sobre essa história de novo chico buarque?
    A propósito, fiz um linque para esse blog lá no meu.
    Abraços do Lúcio Jr.

    ResponderExcluir
  2. Olá Contardo, fiquei muito feliz de encontrar seu blog!
    Parabéns, vc é maravilhoso. Seus textos me ajudaram muito desde a época de vestibular e até hoje me fazem entender melhor as realidades e os interiores.
    Sou médico de família e trabalho em periferias de São Paulo, já trabalhei bem perto de onde foi filmado o Linha de passe, sei como essa realidade é terrível, além disso já fui assaltado, levei facadas, fiquei 3 dias na UTI, trabalho também em Hospitais privados e lhe digo que o ambiente não é dos melhores... mimar elite psicossoatizada não é meu dom.
    Eu perdi meus pais muito cedo, passei por muitas dificuldades antes de ser médico e agora pertencer à classe média (burguesa?) brasileira, mas isso não me faz me identificar mais ou menos com os personagens do filme. Realmente o filme é ótimo e a linha que nos une é consistente e óbvia. Discordo do seu amigo, ele deve ter muito pouca substância interior para fazer àquela crítica ao cimena nacional....
    À partir do mês que vem, lerei seu blog do Canadá, consegui visto de imigrante, vou estudar mais um pouco por lá, pretendo não voltar aqui nem de férias.
    Me surpreendo como vc consegue viver aqui!
    Grande abraço e admiração. Rogério

    ResponderExcluir
  3. Olá tinha percebido a invisibilidade, mas com uma via de mão única. Não percebi que o motoboy também não enxerga a sua vítima. De qualquer forma acho que também estamos representados na patroa e no homem que como muitos de nós confunde ter com poder. O carrão não o torna mais forte que ninguém. Beijo da paçoca

    ResponderExcluir