quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Homens grávidos



Um transexual mulher-para-homem se casa e engravida. Felicitações ou indignação?

TRACY LAGONDINO nasceu mulher, anatômica e juridicamente. Mas cresceu sofrendo, aprisionada num corpo com o qual não concordava, um corpo que desmentia sua certeza de ser homem.

Para entender, pense na anoréxica que, magérrima, olha-se no espelho e acha sua carne revoltante, excessiva: "Esta carcaça não sou eu". Ou lembre-se do começo de "A Metamorfose", de Kafka, quando Gregor Samsa descobre estar preso num corpo de barata.

Dez anos atrás, aos 24, Tracy pediu para mudar de gênero. Removeu cirurgicamente seus seios e começou a tomar injeções bimensais de hormônio masculino. Sua voz e a forma de seu corpo mudaram. A barba cresceu. Claro, Tracy parou de menstruar, mas não se submeteu à operação que retiraria seus órgãos reprodutores e implantaria uma prótese parecida com o pênis. É uma decisão freqüente nas mudanças de gênero de mulher para homem, pois as próteses são imperfeitas, sobretudo no que diz respeito à função urinária.

O fato é que Tracy sumiu e, no seu lugar, apareceu Thomas Beatie, juridicamente homem. Logo, Thomas se casou com Nancy, uma mulher. Eles quiseram ter filhos (obviamente, recorrendo ao esperma de um doador), mas Nancy, por razões médicas, tivera que retirar seu útero.

Thomas, que havia guardado seus órgãos reprodutores femininos, suspendeu as injeções de hormônio masculino e voltou a menstruar. Ele, o homem da família, fecundado artificialmente, engravidou na segunda tentativa e, há um mês, por parto normal, deu à luz uma menina, Susan. Tudo isso, sem cortar a barba.

Nancy, à força de hormônios e bomba aspirante, consegue estimular sua lactação e amamentar Susan, ao menos em parte.

Essa história não é única. Por exemplo, um casal de transexuais mulher-para-homem viveu uma experiência análoga, oito anos atrás. Mas isso foi em San Francisco (uma ilha de tolerância), enquanto Thomas e Nancy vivem no Oregon: eles encontraram uma resistência ferrenha. Um médico irritado disse a Thomas: "Ao menos, tire sua barba". Praticaram a primeira e fracassada fecundação artificial artesanalmente, com uma seringa veterinária.

No site do "The Times" (www.timesonline.co.uk), a notícia recebeu uma enxurrada de comentários, num leque que vai das felicitações ("O bebê é lindo! Espero que consigam todos carregar o fardo de sua diferença com força e amor, rezo para que Deus proteja sua viagem") até a indignação absoluta: "Isso é doente. O que vocês fazem com essa pobre menina é errado... Onde chegou nosso mundo?... Deveria haver leis contra isso". De fato, até pouco tempo atrás, havia leis contra isso. Hoje, ao contrário, inclusive no Brasil, há leis para amparar e permitir a vida e o desejo de quem sofre de uma discordância dolorosa entre seu sentimento de identidade e seu corpo.

Especialistas em transtornos de gênero comentaram sobriamente.

No "The Guardian", um psiquiatra, James Barrett, observou que é difícil, para um transexual mulher-para-homem, passar por uma gravidez, pois a experiência contradiz sua nova identidade. Thomas, no programa de Oprah, na TV americana, fez um comentário que indica a solução que ele encontrou para esse dilema: disse que o desejo de procriar não é nem masculino nem feminino, é humano.
E um psicanalista, Robert Withers, interrogado sobre o futuro de Susan, declarou que ela apenas encontrará "um pouco mais de complicação" na hora de se perguntar "de onde venho?".

Agora, entendo que alguns lancem anátemas contra um acontecimento que lhes parece contrariar a ordem "natural" ou estabelecida das relações, das identidades e das funções.

Mas a história de Thomas, Nancy e Susan poderia nos lembrar que, há mais ou menos 250 anos, quer a gente goste ou não, entramos na era da condicionalidade. Como assim? Pois é, começou com os casamentos, que duram "à condição" que dure o amor. Continuou com as leis, que são respeitadas "à condição" que elas nos pareçam justas. Aos poucos, não há norma que escape à postila que limita sua autoridade acrescentando: "Sob con- dição que meu foro íntimo aprove e que, ao obedecer, eu não me desrespeite".

Sou homem ou mulher à condição de me sentir intimamente homem ou mulher. Sou filho à condição que o pai e a mãe se comportem de maneira que eu os reconheça como pai e mãe.
Falando nisso, nada prova que Thomas não possa ser um bom pai para Susan. Ou uma boa mãe. Ou os dois.

Um comentário:

  1. Oi, o que mais me sensibilizou foi a dificuldade em implantar um pênis funcional na mulher.
    Abraços do Lúcio Jr.

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