quinta-feira, 12 de junho de 2008

Como contar a nossa história?


Para poder mudar, o que é melhor: procurar a origem dos problemas dentro ou fora de nós?

UM INDIVÍDUO, aflito por não encontrar ninguém com quem tocar a vida, consulta um psicoterapeuta. O que pode fazer o terapeuta?

Nos anos 70, conheci um colega que abandonara sua prática para fundar uma agência matrimonial.

Ele estava tão preocupado em curar as dores da solidão urbana que distribuía seus horários de maneira a produzir encontros "acidentais", em sua sala de espera, entre pacientes que lhe pareciam "compatíveis". No fim, ele decidiu que tinha mais vocação casamenteira que terapêutica.

Provavelmente, meu colega se importava tanto com a felicidade amorosa dos outros porque, quando criança, ele não tinha sido razão suficiente para que seus pais continuassem se amando. Igual, o fato é que, mudando de profissão, ele conseguiu fazer algo interessante com seu sintoma -o que já é bom.

Seja como for, quando comecei minha formação de terapeuta, ensinaram-me que, antes de mais nada, era preciso que os pacientes "subjectivassem" seu problema. Ou seja, dito em palavras menos bárbaras, para que o trabalho terapêutico fosse eficiente, a gente deveria primeiro fazer com que os pacientes se convencessem de que suas dificuldades eram, ao menos em parte, internas. Portanto, um paciente que se queixasse de não encontrar companhia deveria ser encorajado a "internalizar" seu problema, ou seja, a contar sua história questionando o que haveria de "errado" NELE (falta de disponibilidade, avareza ao se entregar, covardia do desejo etc.). Aí, poderíamos ajudá-lo a mudar. "Internalizar" (e não fundar uma agência matrimonial) era, em suma, a atitude certa.

Outro exemplo, oposto. Um paciente consulta um terapeuta porque ele sofre de "depressão" ou de "déficit de atenção" -assim lhe foi dito pelo profissional que diagnosticou a doença e prescreveu a medicação. O dito paciente fala de "sua doença" como se ela fosse um atributo de seu ser, um traço defeituoso de sua identidade. Com isso, ele mal vai conseguir contar seus percalços: se o problema é tão intimamente ligado ao que ele é, que diferença sua história pode fazer?
Dessa vez, a atitude certa não seria ajudá-lo a procurar as origens de "sua doença" FORA de sua identidade, ou seja, a "externalizar" sua doença?

Nos anos 1990, li "Narrative Means to Therapeutic Ends" (meios narrativos para fins terapêuticos -ed. Norton), de David Epston e Michael White, terapeutas australianos. A obra me fez uma forte impressão, reavivada, nestes dias, pela notícia da morte de Michael White, aos 59 anos, e pela leitura do livro que ele publicou em 2007, "Maps of Narrative Practice" (mapas da prática narrativa - ed. Norton). Detalhe: há outro Michael White, escritor de romances e história da ciência - ele não morreu.

Epston e White eram convencidos de que a possibilidade de mudar nossa vida depende de nossa maneira de contá-la. Também, eles eram leitores cuidadosos de Michel Foucault e pensavam que tudo o que contribui à criação de uma identidade fixa é opressivo e repressivo. Uma estratégia narrativa e terapêutica que eles propunham consistia em evitar que o paciente considerasse sua doença ou seu problema como parte de sua identidade. Eles preferiam sempre levar o paciente a "externalizar", ou seja, a narrar suas dificuldades como se fossem externas, percalços ou ataques vindos de fora.

Aviso: antes de discordar deles, é bom ler os exemplos clínicos em que, em seu último livro, White leva uma criança (e os pais da mesma) a narrar sua batalha contra a Senhora Encopresia, que suja as cuecas e os lençóis, o Senhor Déficit, que impede de estudar, etc., como se fossem bruxas ou elfos do mal.

Então: para mudar, é melhor "externalizar" nossos problemas, com o risco de descuidar das dinâmicas íntimas que nos governam, ou é melhor "internalizá-los", com o risco de hipertrofiar nossa identidade? Não sei, depende.

Mas, sei que, por exemplo, nas eleições presidenciais nos EUA, muito além das questões que serão debatidas (a guerra, a economia, o sistema de saúde), a aposta é esta: será que os eleitores conseguirão pensar sua história (nacional e privada) como sugerem Epston e White? Será que saberão narrá-la como a história de uma comunidade de indivíduos, brancos, negros e latinos, que se chocaram e detestaram em mil ocasiões, mas não por isso concebem seu destino como conseqüência de identidades fixas e opostas?

Um comentário:

  1. Prezado Contardo Calligaris,

    Habitualmente leio seus artigos na folha, e divulgamos em nossas aulas, sempre que o tema que voce esta abordando conecta-se com o que estamos trabalhando. E foram varios as oportunidades!

    Faço parte da Equipe de um Instituto formador de Terapautas de Familia, Casal e Redes Sociais (ITFCCamp.
    Uma das fortes linhas de nosso trabalho é justamente AS PRÀTICAS NARRATIVAS. E foi com muita satisfação que lemos o seu artigo da ultima 5ª feira na Falha de SPaulo.
    Gostaria de saber se é possivel inclui-lo em nosso site, considerando a pertinência de suas colocações e nossas praticas.
    Ano passado David Epston esteve em Campinas, falando e compartilhando de sua experiÊncia conosco, num delicioso encontro de 4 dias.
    Particularmente, tive a oportunidade de vivenciar 2 workshops com Michael White, no Brasil, onde em especial ele nos mostrou a potência das praticas narrativas e da externalização dos problemas.
    A externalização dos problemas tem sido um recurso amplamente utilizado por nos em nossa Clinica de Responsabilidade Social, com resultados que as vezes nos parace "magicos", mas muito eficazes.

    Convido-o a acessar nossos sites:
    www.familia.med.br
    e o www.praticasnarrativas.com.br.
    Caso entenda que a associação de seu artigo aos nossos sites seja conveniente, nos avise.

    Aguardo o seu retorno.

    Desde ja grata pela atenção.

    Claudia cacau Furia Cesar
    claudiacacau@familia.med.br
    tel 0 19 3242.28.23

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