quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Atualizações


Metade do que um médico aprende na residência é ultrapassada dez anos mais tarde

OS PROGRESSOS da medicina são cada vez mais rápidos. Calcula-se que, hoje, o que um médico sabe no fim de sua residência estará, em boa parte (aproximadamente a metade), ultrapassado dez anos mais tarde.

Felizmente, depois de mais dez anos, o saber originário de um médico não será reduzido a um quarto.

Há partes desse saber que resistem ao tempo. Além do mais, a experiência aprimora o clínico. Um gastroenterologista que não se atualizasse durante uma década ignoraria eventuais possibilidades de cura e procedimentos diagnósticos novos, mas, em compensação, sua arte de apalpar e auscultar seria melhor do que em começo de carreira.

Para estancar a corrosão do saber pelo tempo, nos EUA, por exemplo, os médicos são obrigados a comprovar que, a cada ano, passam 25 horas em cursos, congressos etc. (um princípio análogo se aplica, aliás, a psicólogos e psicoterapeutas). Essa norma é, por sua vez, desatualizada: qualquer médico dedica muito mais de 25 horas por ano à tentativa de manter seu saber em dia.
Não é uma tarefa fácil. Volumes de atualização das diferentes especialidades são publicados regularmente, mas, na hora da publicação (geralmente um ano depois da redação dos textos), uma parte do conteúdo já está ultrapassada. O mesmo vale para os periódicos.

O instrumento mais adaptado à velocidade da evolução do saber é a internet. Recentemente, a universidade Stanford lançou "Skolar", um serviço online de consulta atualizada para médicos. As inscrições foram tantas que o serviço teve que ser fortalecido pela integração com outro (o endereço é agora www.ovid.com/clinicalresource).

A questão da atualização do saber é um bom critério para separar as ciências "exatas" das "humanas". Nas exatas, em princípio, o saber perde sua validade automaticamente (e sem objeções) quando surgem experiências e dados novos e confirmados. Na elaboração do saber das humanas, os dados são tão importantes quanto a interpretação que lhes dá uma significação.
E, na interpretação, o peso do viés, das esperanças e das apostas subjetivas é grande demais para que as "atualizações" sejam acatadas imediatamente.

Um exemplo. No fim dos anos 60, na ilha de Korcula (então Iugoslávia) houve uma reunião de estudo para quadros do Partido Comunista Italiano. Pesquisas sociológicas recentes acabavam de constatar que os operários italianos se consideravam exponentes da classe média, e não do proletariado; além disso, suas ambições diziam respeito ao padrão de vida, não à vontade de se apoderar dos meios de produção, inventando o socialismo. A assembléia se dividiu.

Houve os que queriam que o partido e o sindicado representassem a vontade dos trabalhadores assim como ela se expressava e, portanto, passassem a promover reivindicações essencialmente quantitativas, de salário, bônus etc. No outro extremo, houve os que declararam que as pesquisas eram reacionárias (note-se: não erradas, mas reacionárias) e só mostravam que a classe operária dos anos 60 era "alienada": ela precisava, portanto, de uma vanguarda que lhe lembrasse sua "vocação" revolucionária.

Os exponentes do primeiro grupo foram as levas iniciais do que, mais tarde, foi chamado de "terceira via" social-democrata. Alguns exponentes do segundo, poucos anos depois, confluíram numa luta armada que estropiou e assassinou militantes sindicais "alienados".
Mais duas observações:

1) Nessa divisão entre ciências exatas e humanas, estabelecida pelo caráter irrefutável ou não das atualizações, a psicologia é um híbrido, "mezzo" alici, "mezzo" mozzarella. Deve ser por isso que ela não pára de me fascinar.

2) É óbvio que as artes, embora constituam propriamente um saber, não sofrem de nenhuma maneira o mesmo desgaste do saber científico: o último romance publicado não compromete nem "Moby Dick", nem o "Orlando Furioso". Mas isso não significa que não haja uma espécie de exigência de atualização nas artes. Como assim?

Na homenagem a Paulo Autran que aconteceu no sábado passado, durante as Satyrianas, na praça Roosevelt, em São Paulo, alguém lembrou que Paulo Autran, até o fim, não parava de se interessar pelo trabalho de jovens atores, dramaturgos, diretores etc. e de assistir às peças que eles montavam. O grande artista é sempre sedento de conhecer e apreciar o trabalho dos que vêm depois dele.

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