No jornal, a vida e a morte das vítimas eram o fato inescapável, sem canções para consolar
SOUBE QUE algo tinha acontecido em Congonhas por um telefonema: alguém, trancado na Washington Luís, desmarcava seu compromisso comigo. Logo abri a página do UOL, com as primeiras imagens e reportagens.Uma hora depois, estava em casa, na frente da televisão, onde fiquei até tarde, zapeando de especial em especial. A televisão, nas catástrofes, funciona assim: permite que a angústia se multiplique num paroxismo, mas garante que ela será controlada por um fluxo ininterrupto de palavras. Explico.
Mesmo que não haja nenhuma notícia nova, a televisão não pára de reapresentar as mesmas imagens e as mesmas informações. A maioria dos espectadores fica olhando, horas a fio, uma repetição infinita. A repetição das imagens parece impor uma experiência extrema: "Veja e viva o horror até não poder mais; foi ISSO o que aconteceu...".
Mas a repetição dos comentários produz o efeito oposto. Os repórteres e as entrevistas não nos dei- xam sós, nunca: "Console-se, não há horror que não possa ser encoberto por palavras". Quando era criança, eu tinha medo de caminhar à noite, sozinho, no campo; o remédio era cantar em voz alta. Funcionava; assim como funcionam as palavras das reportagens.
Três apartes:
1) Em caso de catástrofe, as propagandas deveriam ser retiradas do ar. A volta periódica dos comerciais é tão intolerável quanto o horror do acidente: qualquer objeto de propaganda se torna um símbolo odioso de nossa leviandade.
2) A vontade de denunciar e achar culpados é justa depois de um acidente. Mas sua pressa é mais uma maneira de cantar no escuro: suprime o tempo da meditação, transformando a dor em raiva. E uma grande parte dessa raiva é projetiva; ela é, de fato, contra nós mesmos, que amanhã subiremos num avião, simplesmente para sair de férias. Queremos logo execrar um culpado para não pensar nem um pouco no custo da vida que inventamos e queremos para nós. Há uma velha "piada" que pergunta assim: se um marciano nos propusesse uma invenção que facilita o transporte de mercadorias e pessoas, mas pedisse, em compensação, que sacrificássemos 400 mil jovens por ano, o que você responderia? Nunca aceitaríamos essa troca indigna, não é? Esse é o número de jovens que morrem, no mundo, em acidentes de trânsito, a cada ano.
3) Um exemplo do efeito-tampão produzido pela urgência da caça ao culpado foi o gesto obsceno de Marco Aurélio Garcia e de seu assistente ao aprenderem que talvez uma falha da aeronave fosse responsável pelo acidente. Àquela altura, para Marco Aurélio Garcia, a questão da culpa e a necessidade de tirá-la das cos- tas do governo já eram as únicas coisas relevantes nessa história. Ele conseguiu, assim, esquecer-se dos mortos (e do avião no qual ele su- birá amanhã).
O exemplo é excessivo, mas pertinente: os burocratas nazistas podiam "ignorar" a carga dos trens destinados aos campos de exter- mínio, preocupando-se somente com o bom cumprimento do horário ferroviário. Volto ao assunto. Nos dias seguintes ao acidente, eu imaginava que o jornal da manhã não me traria nada que eu já não tivesse escutado na televisão ou lido na internet. Velha história: o jornal perdeu a batalha da notícia quente, e isso prometeria seu declínio.
Aconteceu o contrário. Entre os meios de informação, foi o jornal que ganhou. A escrita não tem as "virtudes" duvidosas da palavra oral: ela não espanta os fantasmas. E há uma outra razão.
Penso no especial da Folha do dia 20: os retratos das vítimas, os artigos que contavam brevemente sua vida, que nos diziam por que viajaram, o que elas esperavam e quem os esperava, de quem tinham se despedido, qual desamparo elas deixavam atrás de si, tudo isso devolvia às vítimas uma dignidade concreta que se perdia nas reportagens da TV e da internet.
Acima da indignação, das explicações, das acusações, dos planos para mais segurança no futuro, era nas páginas do jornal que a vida e a morte reais se mantinham e se impunham como o fato inescapável, sem canções para se consolar.
Enfim, um toque de humor negro. No caos aéreo, a gente viaja, mas não sabe quando nem se chega. É um sucesso pedagógico: uma administração que, nesse campo, atua sem compromisso com os cidadãos conseguiu produzir cidadãos à sua imagem, incapazes de honrar seus compromissos.