quinta-feira, 26 de julho de 2007

Para que serve o jornal?


No jornal, a vida e a morte das vítimas eram o fato inescapável, sem canções para consolar

SOUBE QUE algo tinha acontecido em Congonhas por um telefonema: alguém, trancado na Washington Luís, desmarcava seu compromisso comigo. Logo abri a página do UOL, com as primeiras imagens e reportagens.

Uma hora depois, estava em casa, na frente da televisão, onde fiquei até tarde, zapeando de especial em especial. A televisão, nas catástrofes, funciona assim: permite que a angústia se multiplique num paroxismo, mas garante que ela será controlada por um fluxo ininterrupto de palavras. Explico.

Mesmo que não haja nenhuma notícia nova, a televisão não pára de reapresentar as mesmas imagens e as mesmas informações. A maioria dos espectadores fica olhando, horas a fio, uma repetição infinita. A repetição das imagens parece impor uma experiência extrema: "Veja e viva o horror até não poder mais; foi ISSO o que aconteceu...".

Mas a repetição dos comentários produz o efeito oposto. Os repórteres e as entrevistas não nos dei- xam sós, nunca: "Console-se, não há horror que não possa ser encoberto por palavras". Quando era criança, eu tinha medo de caminhar à noite, sozinho, no campo; o remédio era cantar em voz alta. Funcionava; assim como funcionam as palavras das reportagens.

Três apartes:

1) Em caso de catástrofe, as propagandas deveriam ser retiradas do ar. A volta periódica dos comerciais é tão intolerável quanto o horror do acidente: qualquer objeto de propaganda se torna um símbolo odioso de nossa leviandade.

2) A vontade de denunciar e achar culpados é justa depois de um acidente. Mas sua pressa é mais uma maneira de cantar no escuro: suprime o tempo da meditação, transformando a dor em raiva. E uma grande parte dessa raiva é projetiva; ela é, de fato, contra nós mesmos, que amanhã subiremos num avião, simplesmente para sair de férias. Queremos logo execrar um culpado para não pensar nem um pouco no custo da vida que inventamos e queremos para nós. Há uma velha "piada" que pergunta assim: se um marciano nos propusesse uma invenção que facilita o transporte de mercadorias e pessoas, mas pedisse, em compensação, que sacrificássemos 400 mil jovens por ano, o que você responderia? Nunca aceitaríamos essa troca indigna, não é? Esse é o número de jovens que morrem, no mundo, em acidentes de trânsito, a cada ano.

3) Um exemplo do efeito-tampão produzido pela urgência da caça ao culpado foi o gesto obsceno de Marco Aurélio Garcia e de seu assistente ao aprenderem que talvez uma falha da aeronave fosse responsável pelo acidente. Àquela altura, para Marco Aurélio Garcia, a questão da culpa e a necessidade de tirá-la das cos- tas do governo já eram as únicas coisas relevantes nessa história. Ele conseguiu, assim, esquecer-se dos mortos (e do avião no qual ele su- birá amanhã).

O exemplo é excessivo, mas pertinente: os burocratas nazistas podiam "ignorar" a carga dos trens destinados aos campos de exter- mínio, preocupando-se somente com o bom cumprimento do horário ferroviário. Volto ao assunto. Nos dias seguintes ao acidente, eu imaginava que o jornal da manhã não me traria nada que eu já não tivesse escutado na televisão ou lido na internet. Velha história: o jornal perdeu a batalha da notícia quente, e isso prometeria seu declínio.

Aconteceu o contrário. Entre os meios de informação, foi o jornal que ganhou. A escrita não tem as "virtudes" duvidosas da palavra oral: ela não espanta os fantasmas. E há uma outra razão.
Penso no especial da Folha do dia 20: os retratos das vítimas, os artigos que contavam brevemente sua vida, que nos diziam por que viajaram, o que elas esperavam e quem os esperava, de quem tinham se despedido, qual desamparo elas deixavam atrás de si, tudo isso devolvia às vítimas uma dignidade concreta que se perdia nas reportagens da TV e da internet.

Acima da indignação, das explicações, das acusações, dos planos para mais segurança no futuro, era nas páginas do jornal que a vida e a morte reais se mantinham e se impunham como o fato inescapável, sem canções para se consolar.

Enfim, um toque de humor negro. No caos aéreo, a gente viaja, mas não sabe quando nem se chega. É um sucesso pedagógico: uma administração que, nesse campo, atua sem compromisso com os cidadãos conseguiu produzir cidadãos à sua imagem, incapazes de honrar seus compromissos.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Brincadeiras radicais



Brincar com a morte pode parecer a única brincadeira que vale a pena, a única séria


"COUNSELING TODAY" (o aconselhamento hoje) é a publicação mensal da American Counseling Association, uma espécie de sindicato norte-americano, que reúne terapeutas de todas as orientações.

No número de maio deste ano, a revista publicou um artigo, de Angela Kennedy, para alertar sobre a difusão, principalmente entre os jovens, de uma prática perigosa: a "brincadeira" da auto-sufocação, também chamada "jogo do desmaio" ou "macaco no espaço".

A prática consiste em produzir uma asfixia temporária em si mesmo ou, quando há mais de um "jogador", num parceiro de quem se espera a recíproca.

O sujeito exerce uma pressão no ponto adequado do pescoço, sobre a artéria carótida, cortando o fluxo de sangue e oxigênio: o cérebro, aos poucos, apaga. O "jogador", aproximando-se do desmaio, sente um formigamento generalizado, mas o ápice da experiência acontece quando a circulação é liberada e o sangue volta com força para o cérebro.

Existem variantes da "brincadeira". A diminuição de dióxido de carbono no sangue produzida por hiperventilação, ou seja, respirando rápida e profundamente durante um bom tempo. Ou, então, seu oposto: a asfixia produzida fechando um saco plástico ao redor da cabeça.

Também há outras maneira de praticar a "brincadeira" básica. A mais perigosa, obviamente, acontece quando, em vez de pressionar a carótida, um "jogador" solitário usa uma corda ou um cinto para apertar seu próprio pescoço. Segundo o artigo, seria necessário revisar as estatísticas dos suicídios por enforcamento, considerando como possíveis casos de "brincadeira" malograda as situações em que o sujeito se enforcou sem pular no vazio, mas amarrando corda ou cinto à altura do pescoço e dobrando as pernas para se estrangular progressivamente.

Salvo acidente (danos cerebrais irreversíveis e, eventualmente, morte), essas práticas são difíceis de ser detectadas. Freqüentemente, os "jogadores" são adolescentes sem problemas, bem integrados na escola e no grupo. Ao não ser que um jovem passe de repente a usar gola alta ou echarpe no pescoço para esconder marcas ocasionais, os sinais de alerta indicados pelo artigo são consistentes com qualquer adolescente (vontade de se trancar no quarto, dor de cabeça, irritabilidade etc.).

Quem quer saber mais pode consultar o site www.stop-the-choking-game.com (com atalhos para outro sites) ou, para verificar que o fenômeno não é apenas norte-americano, ler um artigo francês sobre o tema, no "Journal de Pédiatrie et de Puériculture" (vol. 19, nº 8, dezembro de 2006).

A prática era conhecida há tempo, embora silenciada para que não se difundisse. A American Counseling Association preferiu agora informar a comunidade.

Na minha clínica, só encontrei um caso (que, por sorte, não acabou em desastre). Pensei nele recentemente. Viajando pela Itália, poucas semanas atrás, assisti à cena seguinte. Adolescentes espanhóis em excursão, sentados no chão na Piazza del Campo de Siena, comportavam-se como idiotas. Atiravam nos pombos com armas de brinquedo que acabavam de comprar, falavam besteiras em megafones que também acabavam de comprar e enchiam de lixo o chão ao redor deles, embora estivessem a três passos de uma lixeira. Zombaram repetidamente de cidadãos que tentaram acalmar sua estupidez. Enfim, um lixeiro, indignado, largou sua vassoura e saiu à procura de um policial. Embora eles entendessem a ameaça, não pararam de zoar.

Antes que o policial chegasse, eis que entrou na Piazza, perto do lugar onde eles estavam acampados, um funeral: primeiro vinha um padre, logo o caixão, transportado por seis homens, e a viúva e os filhos, chorando. Nos cafés, as pessoas se levantaram, por respeito. Os jovens espanhóis emudeceram, guardaram em suas caixas arminhas e megafones; um deles juntou os restos de pizza e as garrafas vazias e levou tudo para a lixeira.

Moral da história? A morte é uma coisa séria; talvez, como dizia Freud (e não só Freud), ela seja o único mestre absoluto de nossa vida. Brincar com a morte, de repente, pode parecer a única brincadeira que vale a pena, por ser uma "brincadeira" realmente séria (nada a ver com jogos virtuais ou armas de plástico).

Agora, de vez em quando, pensar na morte pode também nos ajudar a levar a vida mais a sério.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

"Ratatouille" e o desejo


Quando o caminho do nosso desejo parece árduo, devaneamos para não agir

CHEGAM AS férias escolares, e os filmes para crianças invadem as salas.
Em "Harry Potter e a Ordem da Fênix", pré-adolescentes e adolescentes encontrarão mais uma chance para sonhar que eles são órfãos, bruxos e heróicos. Outros preferirão o "Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado" e se imaginarão dotados de poderes descomunais.

Nenhum problema: o devaneio, além de ser prazeroso, é um dos caminhos pelos quais se enveredam e se desenvolvem nossos desejos. Mas devanear e desejar não são a mesma coisa. Ao contrário, devanear pode ser um jeito de contornar o nosso desejo, ou melhor, de celebrá-lo aparentemente (de olhos abertos ou fechados), mas sem pagar o preço de sua realização e sem correr o risco do malogro de nossos esforços. Em suma, sobretudo quando o caminho de nosso desejo parece árduo e improvável, devaneamos para não agir.

Por isso, gostei de um outro filme para crianças, que estreou na semana passada, "Ratatouille", de Brad Bird. Essa animação, da Pixar, conta a história de Remy, um rato que deseja ser chef de cozinha.

Se você fosse um rato e quisesse ser chef, qualquer orientador lhe daria o conselho seguinte: esqueça e sonhe com algo diferente. Afinal, numa cozinha, não tem bicho menos indicado do que um rato. A vigilância sanitária fecha os restaurantes freqüentados por roedores; imagine o que ela faria com um restaurante capitaneado por um rato. Sua família também faria o impossível para que você mudasse de idéia. Rato pode comer restos e lixo ou se insinuar nas despensas e dar umas mordidas nos suprimentos, mas cozinhar alimentos? Inventar sublimes combinações de sabores?

Preparar amorosamente pratos tão bonitos quanto suculentos? Isso, convenhamos, não é coisa para rato. Ora, Remy é cabeça dura. Ele está disposto a desafiar a autoridade paterna, o conforto do clã e as convenções sociais, que lhe são francamente desfavoráveis. Não é porque sente o apelo do sucesso ou imagina futuros lucrativos. É porque cozinhar, para ele, significa dedicar-se ao que ele sabe fazer, realizar quem ele é.

Tempo atrás, escrevi uma crônica sobre a pouca ousadia dos desejos de nossos jovens. Pois bem, como antídoto, prescrevo "Ratatouille" a todos, crianças e pais. Quando pensamos no futuro de nossos rebentos, temos, em geral, uma visão limitada, preocupada com a "possibilidade" de seus desejos. Na maioria dos casos, preferimos que eles tenham desejos "plausíveis".

Parece lógico. Mas o problema é que medimos esse "plausível" a partir da lição de nossos próprios limites ou fracassos. Isso, sem mencionar nossa vontade de guardar os filhos por perto e, eventualmente, nossa inveja, que é inconfessável, mas existe: nem sempre é fácil aceitar que nossos filhos inventem para si uma vida melhor do que a nossa.

O rato que ambiciona ser chef de cozinha é como o menino que pretende se tornar escritor, ator, violinista ou astronauta. Em geral, nos filhos que desejam uma vida que atropelaria a cerca de casa, a resistência dos pais encoraja uma hipertrofia do devaneio, que compensa o abandono dos sonhos "extravagantes". Este é o recado: "Seja razoável em seus desejos e solte-se no devaneio", "Resigne-se ao plausível e, em compensação, alugue DVDs ("Harry Potter" ou o "Quarteto", por exemplo) para o fim de semana". Os devaneios do domingo consolarão e inibirão o anseio "louco" de correr atrás de aspirações incomuns.

É possível entender "Ratatouille" como uma apologia da sociedade aberta, com oportunidades para todos: até um rato, com dedicação e persistência, pode se tornar chef. Mas, antes disso, o filme é uma homenagem à coragem de quem se autoriza a procurar a vida que ele quer. A história de Remy não inspira devaneios de glória culinária. Se o filme nos faz sonhar, é com a galhardia de quem não larga o osso (o queijo, no caso) de seu desejo.

Mais uma coisa: "Ratatouille" é também um excelente filme sobre a arte de cozinhar. É bem provável que, para quase todos, a primeira gratificação tenha sido oral. Afinal, o seio e a chupeta nos foram impostos como respostas universais a qualquer choro. O grande cozinheiro é aquele que, ao mesmo tempo, evoca em nós a lembrança das primeiras gratificações e nos surpreende com uma experiência sensorial inédita, inesperada. A cozinha é isto: a arte de nos dar a satisfação mais primitiva de uma maneira nova.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Quadrilhas de canalhas


Está com medo de tornar-se doméstica ou prostituta? Bata em pobres, índios e putas

EM POUCAS linhas, na Folha de sexta, dia 29 de junho, Eliane Cantanhêde descreveu perfeitamente o mundo no qual é possível que rapazes de classe média queimem um índio pensando que é "só um mendigo" ou espanquem uma mulher pensando que é "só uma prostituta". Provavelmente, não teria sido muito diferente se eles tivessem pensado que era só uma empregada doméstica.

É um mundo em que a permissividade é o melhor remédio contra a inevitável insegurança social. Nesse mundo, os pais fazem qualquer coisa para que seus rebentos acreditem gozar de um privilégio absoluto; esse é o jeito que os adultos encontram para acalmar sua própria insegurança, para se convencer de que eles mesmos gozam de privilégios garantidos e incontestáveis. Como escreveu Maria Rita Kehl no Mais! de domingo passado, nesse mundo, aos inseguros não basta ser cliente, é preciso que eles sejam clientes especiais.

Uma classe média insegura é o reservatório em que os fascismos sempre procuraram seus canalhas. Você está com medo de perder seu lugar e, de um dia para o outro, tornar-se índio, mendigo ou empregada doméstica? Pois é, pode bater neles e encontrará assim a confortável certeza de seu status. Aos inseguros em seu desejo sexual, aos mais apavorados com a idéia de sua impotência ou de sua "bichice", é proposto um remédio análogo. Você provará ser "macho" batendo em "veados" e prostitutas.

Há mais um detalhe: a inteligência humana tem limites, a estupidez não tem. Essa diferença aparece sobretudo no comportamento de grupo. Imaginemos que a gente possa dar um valor numérico à inteligência e à estupidez. E suponhamos que o valor médio seja dois. Pois bem, três sujeitos mediamente inteligentes, uma vez agrupados, terão inteligência seis. Com a estupidez, a coisa não funciona assim: a estupidez cresce exponencialmente. A soma de três estúpidos não é estupidez seis, mas estupidez oito (dois vezes dois, vezes dois). Quatro estúpidos: estupidez 16. Cinco: estupidez 32.

Curiosamente, essa regra vale até chegar, mais ou menos, a um grupo de dez. Aí a coisa tranca: a partir de dez, torna-se mais provável que haja alguém para discordar da boçalidade ambiente. Não porque, entre dez, haveria necessariamente um herói ou um sábio, mas porque, num grupo de dez, quem se opõe conta com a séria possibilidade de que, no grupo, haja ao menos um outro para se opor junto com ele.

Esse funcionamento, por sua vez, decai quando o grupo se torna massa. É difícil dizer a partir de quantos membros isso acontece, mas não é preciso que sejam muitos: um grupo de linchamento, por exemplo, pode desenvolver toda sua estupidez coletiva com 20 ou 30 membros.

Em alguns Estados dos EUA, é permitido dirigir a partir dos 16 anos. Mas, em muitos condados desses Estados, vige uma lei pela qual um jovem, até aos 21 anos, só pode dirigir se houver um adulto no carro. Pouco importa que esse adulto seja habilitado a se servir de um carro. O problema não é a perícia do motorista, mas o fato estatístico de que três, quatro ou cinco jovens num mesmo carro constituem um perigo para eles mesmos e para os outros: o grupo de "amigos" potencializa a estupidez de cada um, muito mais do que sua inteligência. Talvez seja por isso, aliás, que, para o legislador, a formação de quadrilha é um crime em si.

Qualquer pai de adolescente reza ou deveria rezar para que seu filho encontre rapidamente uma namorada e passe a sair na noite com ela, não com a turma dos amigos. Pois a turma é parente da gangue.

Como se sabe, o pai de um dos cinco jovens que, na madrugada do dia 23 de junho, na Barra da Tijuca, espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto, comentou, defendendo o filho: "Prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?". É o desespero de quem sente seu privilégio ameaçado: como assim, tratar a gente como qualquer um?

Não éramos "clientes especiais"?

Mas as frases revelam também a distância entre o filho que o pai conhece em casa (o filho que teria "caráter") e o filho que se revela na ação do grupinho (esse filho não tem "caráter" algum).
O que precede poderia ser entendido como uma atenuante, tipo: eles agiram assim não por serem canalhas, mas por estarem em grupo. Ora, cuidado: o grupo não produz, ele REVELA os canalhas.

domingo, 1 de julho de 2007

Acabou "Celebridade"



Na sexta-feira passada, na hora do último capítulo de "Celebridade", estava festejando o casamento de Alexandre e Sílvia, amigos queridos. Depois da cerimônia e das valsas, nas conversas de mesa, já era conhecido o desfecho: Laura matou Lineu, Laura e Marcos morreram, Renato foi para a cadeia. Surgiram tantas perguntas que foi preciso entrevistar por celular alguém que assistira ao episódio: o que aconteceu com Ana Paula? A Darlene, a Jacqueline? E o Cristiano, a Beatriz?

Mais tarde, na frente da casa do Pacaembu onde acontecia a festa, a novela foi o tema de minha conversa com os seguranças e os motoristas do "valet parking".

No sábado, novos comentários no café onde almoçamos, no táxi que me levava até uma livraria e com o vendedor que lá me atendeu. À noite, com um casal de amigos, o programa foi risoto e reprise do último capítulo. Deu um bom papo. Isso sem contar as mensagens sobre o fim da novela que os internautas iam postando nos blogs abertos para a ocasião.

Não assisto às novelas com regularidade. Com a exceção de "Terra Nostra" (que curti integralmente nas fitas que são distribuídas pelas lojas brasileiras dos EUA), vejo, em média, três capítulos por mês de cada novela das oito. É suficiente para ter uma idéia da evolução da trama e para não ficar a ver navios quando alguém evoca uma personagem ou um tema da novela em curso.

O que mais me interessa (e admiro) nas novelas é sua função nas conversas cotidianas. Acho extraordinário que, durante meses, uma mesma história esteja ativamente presente no imaginário da maioria.

Há os que não perdem um capítulo e mal se lembram de que se trata de uma ficção; e há, no outro extremo do leque, os que não conseguem mencionar a novela sem manifestar desprezo ou condescendência. Mas, salvo considerar que a própria existência do Brasil como nação seja um infortúnio, todos (ou quase) reconhecem que as novelas tiveram e têm um papel crucial na unificação do país, fornecendo narrativas comuns do Oiapoque ao Chuí e das favelas às mansões.
Claro, elas propõem os ideais urbanos de consumo às massas rurais ou desfavorecidas, assim como, às vezes, idealizam o campo e as vilas para as massas citadinas. Mas, com isso, elas nos levam a incluir vidas diferentes no nosso repertório de histórias possíveis.

Voltemos às conversas que escutei ou das quais participei nesses dias. Eis uma pequena amostra das questões levantadas.

Marcos: merecia a mesma punição que Laura? Como medir os graus de maldade: pela (relativa) moderação nos atos (nesse caso, Marcos é menos culpado)? Ou pelo cinismo das motivações (nesse caso, Laura, pelo ódio que a anima, é menos culpada)?

Beatriz: era do mal ou do bem? Ou seja, o amor (por um parceiro ou por um filho) pode ser uma "desculpa"?

Daniel: estragou ou não estragou o filho, Paulo César? Será que, quando tentamos compensar um abandono passado, estamos sobretudo comprando a absolvição de nossa culpa?

Maria Clara: tinha direito de se aproveitar do amor de Hugo? Ainda bem que Hugo ganhou uma viagem a Florianópolis com Ana Paula Arósio.

Cristiano: se ficasse sozinho, seria bem feito. Quem não tem a coragem de enxergar o amor dos outros e de declarar o seu, que se dane.

Vladimir: será que é verdade que todo brasileiro quer ser anônimo? E será que ser anônimo é condição de ser feliz? Não é uma história que contam os famosos para nos consolar?

Darlene: qual das duas é verdadeira, a que se alegrava com o incêndio que quase matou suas crianças, dando-lhe um momento de primeira página? Ou a que renuncia ao papel numa novela de Sílvio de Abreu para cuidar dos seus bebês? Será que há mesmo uma alternativa entre sucesso e amor materno? Será, em suma, que o mundo comandado pela revista "Fama" é um clube de celibatários?

Inácio e os filhos de Ana Paula: o que é amor de mãe e de pai? Coisa de sangue ou coisa de coração?

Explosão de papo noveleiro? Certo, mas o fato é que, em matéria de moral, as grandes fórmulas fracassam sempre. Na complexidade do dia-a-dia, a sabedoria moral é feita de parábolas, de exemplos e contra-exemplos. A capacidade de decidir o que é justo depende da variedade de nosso repertório de experiências e de histórias. Ou seja, depende da riqueza de nossa cultura.

Alguns se indignaram com a presença de Gilberto Gil na festa conclusiva do último capítulo. Não entendo. Acaba uma vasta ficção que leva o povo inteiro (ou quase) a discutir sobre os casos da vida e sobre as incertezas morais que os acompanham: se o ministro da Cultura não deve cantar e tocar nessa ocasião (sendo que ele faz isso muito bem), não sei quando deveria.

Enfim, a quem objetasse que as novelas vão e vêm sem constituir nenhum repertório de narrativas que nos sirvam para a vida, respondo com o comentário de um internauta quando, antes de sexta, choviam palpites sobre quem seria o assassino de Lineu. Ele escreveu: "Eu sei, foi Odete Roitman".