quinta-feira, 12 de outubro de 2006

Outdoors ou não


Odiando a publicidade, tentamos exorcizar a futilidade de nosso próprio consumismo
NUMEROSOS LEITORES me escreveram comentando minhas últimas colunas, nas quais tratei do vídeo de Daniella Cicarelli e da nova lei da Prefeitura de São Paulo, que proíbe os outdoors publicitários no município. Tento responder.

Sobre o vídeo, uma observação: concordo, transar no meio da praia constitui uma ofensa ao pudor de quem não está a fim de assistir ao espetáculo. Ora, no meio da praia, Daniella e seu namorado só se beijaram e abraçaram. Como assinala o vídeo, o resto ocorreu numa área afastada: uma teleobjetiva foi necessária para filmar o casal. Imagine que, com um telescópio, você espie uma transa que acontece num prédio situado a 200 metros de sua janela. Você se sentirá insultado pela "exibição"? "Fala sério!"

Mas quero voltar à nova lei da Prefeitura de São Paulo e evitar alguns mal-entendidos (enviarei a íntegra da lei aos leitores que a solicitarem).

1) Acharia ótima a idéia de uma regulamentação básica dos outdoors publicitários (de sua localização, de seu tamanho etc.), mas a lei não propõe uma regulamentação: ela decide a abolição de todos os outdoors.

Quanto aos "anúncios indicativos" (o letreiro com o nome de uma loja, o programa de um teatro etc.), ela propõe uma regulamentação tão complexa que eu não consegui estabelecer se a padaria de minha esquina deverá ou não reformar seu letreiro. Aviso: a complexidade das regulamentações é, tradicionalmente, um convite à corrupção; quando ninguém entende direito o que pode e o que não pode, alguém acaba pagando para que o deixem em paz.

2) No caso dos anúncios publicitários, a lei funciona exatamente como a repressão psíquica. Por não querer ou conseguir diferenciar, ela proíbe tudo (é o abc do sintoma neurótico: para coibir minha "devassidão" sexual, quero mesas e cadeiras sem "pernas", nenhum objeto de "pau", nada de "sainha" nas camas...aliás, "cama" já é uma palavra suspeita).

Por outro lado, a lei (que projeta melhorar a paisagem urbana) propõe uma diversão: proíbe uma coisa para que a gente se esqueça de outras (que, no caso, dependem do poder público).
Espreitando a aparição de um dirigível publicitário (que será proibido), talvez você não veja o incrível emaranhado dos fios das ligações elétricas que "ornamentam" nosso céu ou não perceba a nuvem de poluição que dá sua cor inconfundível ao pôr-do-sol paulistano. Indignado com o anúncio de um reparador de cadeiras, talvez você não note o estado deplorável dos canteiros.
Uma conseqüência, não desejada pelo autor da lei: sem letreiros luminosos e holofotes, perceberemos, isso sim, que a iluminação pública de São Paulo é assustadoramente fraca.

Percorra a pé, de noite, a av. Faria Lima, vindo da Tabapuã em direção ao Oeste; entrando à direita, na luz dos restaurantes da rua Amauri, sua pressão arterial melhorará singularmente.

4) Alguns leitores se preocupam com nossos edifícios históricos. É estranho: nunca vi outdoors publicitários escondendo o Municipal, a Pinacoteca ou a Estação da Luz. Em compensação, pelo que entendi, o Masp não poderá mais anunciar suas exposições temporárias com megatelões laterais que chamem a atenção de quem transita de carro pela Paulista.

5) A implementação da lei é prevista com total descaso pela vida de muitos cidadãos. Em três meses, sem transição, uma indústria de serviços será desmantelada (com a perda de milhares de empregos), aproximadamente cinco mil táxis não disporão mais de uma pequena renda mensal suplementar e por aí vai.

6) É possível que a aprovação entusiasta da lei por muitos comentadores seja inspirada por princípios estéticos sóbrios e adversos ao "pop". Essa discussão fica para outra vez.

Mas suspeito que a iniciativa conte sobretudo com uma antipatia pela publicidade, uma ojeriza de bom-tom, que vê nos outdoors o símbolo (ou, pior, a causa) de nossa frivolidade (e de nossa "massificação", acrescentam alguns): tirem os outdoors e seremos curados de nossa vontade de cuecas de luxo, voltaremos a pensar em coisas importantes, belas e generosas. Ou seja, suspeito que odiemos, na publicidade, a futilidade de nossos próprios desejos. E a lei nos agrada com a ilusão de que exorcizamos, enfim, o consumismo (o qual, claro, não é parte da gente, mas um demônio que nos possui).

Parodiando o marquês de Sade: "Paulistanos, mais um esforço para sermos revolucionários".

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