quinta-feira, 15 de junho de 2006

Um Deus para nossos desejos

Interesse pelo "Código Da Vinci" manifesta a procura de um Deus que goste de nossos desejos e de nossos prazeres

OS EX-VOTOS são objetos oferecidos e expostos em igrejas e capelas para comemorar um favor que foi pedido a Deus ou a um santo e que Deus ou o santo, generosamente, concederam. Em geral, são de três tipos. Há quadros que representam uma situação penosa em que alguém apelou para a divindade, fez uma promessa e foi salvo: uma criança doente, marinheiros num naufrágio, um incêndio.

Quase sempre, comportam a data, a inscrição "V.F.G.A." ("votum feci, gratiam accepi", fiz um voto e recebi uma graça) e o nome do beneficiado. Há pequenas figuras de prata que representam uma parte do corpo que foi curada (perna, olhos, rosto, barriga etc.), um militar que voltou vivo da guerra ou uma casa. E há corações prateados, que expressam uma gratidão menos específica. Os ex-votos mais velhos são removidos das igrejas para dar espaço aos novos.

Alguns chegam às lojas dos antiquários e, enfim, às mãos de colecionadores enternecidos não pela qualidade artística dos objetos (que é mínima), mas por seu valor humano: eles são concentrados de medo, sofrimento, esperança e fé, metáforas poéticas das festas, das penas e das incertezas da existência. Voltei das férias com uma pequena coleção de ex-votos.

O que me surpreende é que o pedido que produziu a promessa é sempre uma necessidade básica: salvar a vida, estancar a doença, garantir um teto. Claro, santo Antônio deve receber votos e promessas de muitos que buscam namoros e casamentos. E conheço alguém que, há tempo (embora sem sucesso), pede a Deus os números certos para ganhar na loteria.

No entanto, esses pedidos mais frívolos não aparecem nos ex-votos. Suponho que, nesses casos, os agradecimentos se escondam nos corações "genéricos" e discretos que mencionei antes. Seja como for, na nossa relação com santos e deuses, pedir socorro é permitido na necessidade, mas é duvidoso e envergonhado quando se trata de satisfazer desejos.

Não é bem-visto atarefar os santos com vontades fúteis, atrás das quais talvez estejam sentimentos pouco nobres (vaidade, cobiça, sede de poder e por aí vai). Pede-se a Deus e aos santos a vida, a saúde e o bem (sobretudo o dos outros), ao passo que, para conseguir o relógio de Brad Pitt naquela propaganda, um pacto com o Diabo parece obviamente mais apropriado. Essa divisão de tarefas tem um custo considerável. Ela se alimenta na idéia de que o cristianismo (se não o monoteísmo, em geral) seria sisudo, necessariamente anti-hedonista: religião não rima com prazer, e os prazeres seriam sempre culpados.

É como se as disciplinas clássicas do controle de si e da moderação (a própria filosofia de Epicuro) tivessem sido substituídas por uma moral que atribui pontos só ao sofrimento e ao sacrifício ou aos júbilos da contemplação e da celebração de Deus e da obra divina. As alegrias da experiência humana (a começar pelos prazeres do corpo) parecem ser ninharias, perdas de tempo. Especialmente no mundo contemporâneo, essa divisão de tarefas deixa ao Diabo um espaço considerável, se não prioritário.

Deus perde terreno nas sociedades urbanas desenvolvidas, regradas pela variedade dos desejos de coisas supérfluas: se ele é nosso interlocutor para as coisas "sérias", a competência em matéria de desejo e prazeres fica com o demônio. Ora, hoje, em Milão, visitar o cenáculo de Leonardo é impossível sem reservas feitas com um mês de antecedência: os turistas escrutam a figura de João e o espaço em forma de "V" que separa Cristo do apóstolo, constatam a ausência do cálice na mesa etc.

Em suma, eles querem saber se é verdade, como diz "O Código Da Vinci", que Cristo se casou com Madalena. Desde o Concílio de Nicéia (em 325), a igreja tenta conciliar a divindade com a humanidade de Cristo. Para os docetistas, o corpo de Cristo era uma ilusão ótica. Para os arianos, a união de homem e Deus era impossível. Para Luciano de Samósata, Cristo era homem, portanto não podia ser Deus. Todos condenados. Será que os turistas de Milão, leitores do "Código Da Vinci", são novos heréticos?

Pode ser. No entanto, talvez eles procurem apenas uma religião para nossos tempos: se eles imaginam um Cristo mais humano do que manda a ortodoxia, se eles levantam a hipótese de que ele tenha amado uma mulher e conhecido os prazeres da carne, é porque gosta riam que não apenas a necessidade mas também o desejo pudesse pertencer a Deus. Não ao Diabo.

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