quinta-feira, 11 de maio de 2006

"Os 120 Dias de Sodoma"

No fim de semana passado, no Espaço dos Satyros, em São Paulo, estreou a peça "Os 120 Dias de Sodoma".

O texto e a direção são de Rodolfo García Vazquez, que conseguiu milagrosamente "adaptar" (digamos assim) a obra que o marquês de Sade escreveu em 1785, enquanto estava preso na Bastilha.

A história é conhecida: durante 120 dias, quatro libertinos se fecham num castelo com meninas e meninos, que foram raptados para servirem de objetos de deboche -sem limites: os libertinos são suficientemente poderosos para que a Justiça dos homens não os atinja e eles não reconhecem a de Deus.

Dependendo do leitor, os escritos de Sade podem parecer indigestos ou estimular fantasias sexuais, mas, de qualquer forma, eles constituem uma peça chave do quebra-cabeça moderno. Usando uma expressão famosa de Georg Lukacs, Sade é talvez a "máxima consciência possível" da modernidade incipiente.

Quando o mundo começa a sonhar com uma sociedade de iguais e a querer realizá-la, Sade produz uma obra monumental, em que revela que a vontade e o exercício do poder são ou se tornaram escabrosamente eróticos. Como ele mesmo disse, não basta sacudir os alicerces do antigo regime: para sermos revolucionários, vamos precisar de mais um esforço.

O poder parou de ser o atributo exclusivo de algumas castas, mas ainda não é a hora de festejar a invenção da liberdade: a paixão de dominar se alastra por nossa vida de duas maneiras.
A primeira foi o objeto da reflexão de Michel Foucault: na modernidade, as expressões clássicas do poder, autoritárias e diretas, são substituídas por formas capilares de controle. Por exemplo, ao longo do século 19, a medicina se encarregou de regulamentar e reprimir práticas sexuais que a lei não proibia mais.

A segunda é a descoberta de Sade: o poder assombra a fantasia erótica moderna. Eis como a coisa funciona, esquematicamente. Um sujeito se define pela rede de relações que lhe atribui um lugar no mundo. Na modernidade, as relações que mais importam não são as hierarquias sociais estabelecidas: o sujeito se relaciona, antes de mais nada, por amor e por paixão, ou seja, por livre escolha. A conseqüência disso não é um mundo em que o amor e a paixão substituiriam a vontade de dominar. Ao contrário: o amor se torna um teatro do poder e a paixão encontra no domínio ou na submissão um extraordinário recurso para a excitação sexual. Reciprocamente, o exercício do poder é contaminado por modalidades de prazer e de gozo aprendidas na cama, ou seja, por um erotismo violento, sombrio e, em geral, envergonhado.

Na saída da peça, tocado e mexido, sentei-me para pensar um pouco, na frente do teatro, na praça Roosevelt.

Um jovem, moreno e de cabelos pintados de loiro, com sua caixa de madeira a tiracolo, insistiu bastante: "Deixe engraxar, moço". Não se contentava com uma esmola, queria fazer seu trabalho. Um homem do antigo regime teria achado normal que alguém se ajoelhasse para lustrar seus sapatos.

Eu (e não sou o único), por ser moderno, detesto ficar sentado na mesa de um bar enquanto alguém lustra meus sapatos. Depois de assistir à peça, a coisa parecia mais que detestável: obscena. O que acabava de acontecer no palco continuava na rua: eu deveria "gozar" de um privilégio, deixando que alguém "se ajoelhasse" ou "se acocorasse" aos meus pés.

Na sessão de sábado passado, no meio da peça, o próprio García Vazquez congelou a ação para expulsar um espectador que estava tirando fotos às escondidas. O episódio deveria ser repetido a cada vez, como parte da peça. Ele salientaria a extrema coragem do elenco, que se dispõe a ser vítima dos olhares cobiçosos dos espectadores. A intenção do fotógrafo, provavelmente, não era guardar a lembrança da bunda dos atores, mas capturar as vítimas e levá-las para casa (por isso fotografar é proibido em muitas culturas, por ser um ato de captura).

No fim da peça, a vontade de aplaudir é grande, mas aplaudir é difícil, pois uma disposição cênica (que o espectador descobrirá) dirige as ovações aos libertinos e a suas "façanhas".

Alguns (muitos) verão na peça um comentário sobre os tempos que estamos vivendo no Brasil. Aqui, duas observações. 1) Os textos que parecem falar mais diretamente de nossa conjuntura são do próprio Sade ou de La Boétie (século 16). 2) O ministro Durcet não é Zé Dirceu, e o castelo dos 120 dias não é a casa brasiliense da república de Ribeirão Preto. Os libertinos de Sade praticam o mal com a louca grandiosidade de quem quer desafiar Deus, caso ele exista. Comparados com eles, nossos "libertinos" da hora são pequenos "filisteus".

Pasolini, em 1975, levou "Os 120 Dias" para o cinema e filmou "Salò". Ele quis revelar, assim, a erótica assassina do fascismo, que, na Itália dos anos 70, tentava voltar ao poder. Mas o que faz a grandeza dessa obra de Pasolini é a coragem com a qual ele interroga, pelo filme, seus próprios demônios internos e, portanto, os nossos.

Sade é um autor para pessoas honestas, honestas consigo mesmas. Era o caso de Pasolini e é o caso da trupe dos Satyros.

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