Pré-estréia nesta semana "Mar Adentro", de Alejandro Amenábar, com Javier Bardem (inesquecível) no papel de Ramón, que deseja morrer.
O filme, inspirado numa história real, vale como um daqueles "dilemas morais" que foram inventados nos anos 70 por um grande psicólogo, Lawrence Kohlberg. Eram histórias em que ficava impossível decidir claramente onde estava o bem e onde o mal; elas eram apresentadas a grupos de estudantes, que eram convidados a discutir. O propósito não era que os jovens chegassem a uma conclusão positiva (eis o certo, eis o errado), mas que articulassem as alternativas em toda sua complicação. Esses exercícios, na experiência de Kohlberg, constituíam a melhor educação moral possível: neles, não se tratava de transmitir princípios, mas de produzir a capacidade de pensar na questão do bem e do mal de uma maneira cada vez mais complexa.
Pois bem, "Mar Adentro" pergunta: quem não está mais a fim de viver tem ou não o direito de morrer? Fato notável: apesar da gravidade do assunto, o filme não é nem um pouco deprimente.
Melhor evitar um equívoco: "Mar Adentro" não é um filme sobre eutanásia. A eutanásia consiste em evitar um fim inutilmente longo, doloroso ou indigno. "As Invasões Bárbaras", de Denys Arcand, por exemplo, era um filme sobre eutanásia, ou seja, sobre a possibilidade de programar a morte como uma festa de despedida, em vez de esperar a hora da agonia. No filme de Amenábar, Julia, a advogada de Ramón, sofre de uma doença degenerativa. Se ela quisesse morrer, ela, sim, recorreria à eutanásia para sair de cena antes de perder sua dignidade subjetiva.
Mas o caso de Ramón é outro: tetraplégico, um acidente já antigo o confina na cama ou numa cadeira de rodas (que, em geral, ele recusa). Ramón não é ameaçado por uma morte iminente ou sofrida. E a invalidez não o condena a uma vida indigna: cuidado por seus familiares com carinho e respeito, Ramón conhece várias razões de viver, desde a vontade e a capacidade de traduzir sua experiência em poesia até a clara consciência de ser um pai substituto para seu sobrinho.
Salvo por sua vontade persistente de morrer, Ramón não é clinicamente deprimido. Um dia, ele considera as cartas que a vida lhe distribuiu e decide que, com essas cartas, ele prefere deixar a mesa. Vamos ou não lhe reconhecer o direito ao suicídio?
Para quem acredita que a vida seja um dom divino, só Deus pode retirá-la. Mas como fica para os que não dispõem dessa fé?
A idéia de que a vida seja um valor é um dos pressupostos mais fortes de nossa cultura. Amar alguém sem querer que ele viva é, para nós, quase impossível. Ramón exige uma prova de amor paradoxal: se vocês me amam, respeitem minha vontade e me ajudem a morrer.
Ora, para quem não acredita na tese do dom divino, não apenas a vida biológica, mas a própria vontade de viver só pode vir dos outros. Talvez seja esse, aliás, o legado mais precioso que os pais pretendem transmitir aos filhos. Como observa o pai de Ramón, se há uma coisa pior que perder um filho, é ter um filho que não está a fim de viver.
Portanto, é muito difícil lidar com a vontade de morrer de alguém que amamos sem entender seu desejo como uma falha nossa, uma prova da insuficiência de nosso amor. Recebemos o suicídio de um ser amado como uma acusação: vocês não souberam me amar o suficiente para que eu estivesse a fim de viver.
Podemos nos consolar afirmando que, por querer pôr fim à sua vida, o suicida é um doente. Não muda nada: sua "doença" nos aparecerá como efeito de nosso fracasso em justificar sua vida.
Melhor reconhecer que a vontade de viver surge em nós com a idéia de que nossa vinda ao mundo deu sentido à existência de quem nos procriou. E segue assim: vivemos pelos outros e para eles. Com isso, inevitavelmente, o suicídio de um condena e ameaça a todos: por que viver, se não bastamos para que nossos amados estejam a fim de seguir vivendo?
Depois da morte de minha mãe, meu pai declarou que não estava mais interessado em viver. Não tomou nenhuma medida concreta; apenas foi definhando, esperando que a coisa acabasse. Amava-o também por essa última obstinada coerência. Ao mesmo tempo, sua decisão testemunhava minha insuficiência, minha incapacidade de lhe dar vontade de continuar.
Naquele inverno, meu irmão e eu passamos com ele todo o tempo de que dispúnhamos, como se nossa presença pudesse motivá-lo a seguir vivendo. Lembro-me que, quando tive que voltar para Nova York, eu circulava pelas ruas resmungando a exortação que Dylan Thomas escreveu para seu próprio pai doente. No sotaque galês do poeta, repetia, como um encantamento que talvez meu pai ouvisse do outro lado do oceano: "Do not go gentle into that good night, Old age should burn and rave at close of day; Rage, rage against the dying of the light" (na bonita tradução de Nelson Ascher: Não te vás dócil boa noite adentro, Cabe à idade se irar e arder no fim do dia; Afronta, afronta a luz que está morrendo).
Não adiantou.
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