Desde o começo do namoro de Marta Suplicy e Luis Favre, em 2001, é fácil ouvir comentários zombadores. O casamento, no sábado passado, reavivou a produção.
Espírito partidário à parte, qual é a origem dessa reprovação, engraçada ou raivosa que seja?
1) Em 2001, Marta tinha mais de 50 anos, era ex-deputada federal, prefeita, casada com um senador da República. Por seu trabalho passado, ela representava também um certo ideal de sabedoria nas coisas do amor.
Ora, quem é mais velho, nos governa e parece mais sábio que a gente é automaticamente colocado, por nossa imaginação, na categoria dos "adultos", inaugurada pelos pais que tivemos ou teríamos gostado de ter. E, banalmente, as crianças não gostam que os pais se separem. Por exemplo, temem ser abandonadas: se eles pensam em seus amores, como é que vão se ocupar direito da gente?
Tradução dessa preocupação infantil, desde 2001 vozes nos bares e nos jantares paulistanos perguntavam: enfim, Marta vai governar ou namorar?
2) A idéia de que governar e namorar sejam alternativas excludentes se apóia também na convicção de que o poder deve ter um preço. Quer governar? Tudo bem, mas esqueça amores e paixões, deixe para depois, sacrifique-se.
É uma convicção que nos consola. Pois confirma que há uma razão pela qual não somos prefeitos, presidentes, governadores ou mesmo vereadores; é porque preferimos cuidar da vida: namorar, por exemplo.
O governante infeliz apazigua nossa culpa cívica. E o governante que não pretende desprezar seus sentimentos está querendo demais.
Marta, porta-voz há tempos do direito à busca da felicidade privada, não tinha como namorar de fininho. Declarou que uma prefeita feliz governa melhor. Muitos teriam preferido ouvir que governar custa caro e implica a renúncia aos prazeres do amor.
3) Os compromissos, a distância geográfica, o momento inoportuno, tudo conjurava, na história de Marta e Luis Favre, para que fosse sensato desistir. Eles escolheram um caminho árduo.
As histórias de amor dificílimas, a gente adora no "Aguenta Coração", do Faustão, em que elas valem como fragmentos de novela, ficções com as quais sonhar. Muito mais difícil é apreciá-las na realidade.
Em geral, em matéria de amor, somos ousados apenas nos devaneios literários. Consequência: a história real de Marta e Luis suscita nostalgias de paixões renunciadas, levanta a inveja de quem não sabe ou não soube ousar.
4) Em 2001, ouvi dizer: "Se ela não fosse prefeita, o cara nem a cumprimentaria". Favre seria um caçador de dote político, interessado no cargo de "príncipe consorte". No domingo passado, um taxista comentou: "Se Marta não se reelege, o homem cai fora".
De fato, o futuro político de Marta não depende de sua reeleição. Mas o que importa aqui é a idéia de que Favre estaria gostando da prefeita, e não da Marta.
É uma velha história: imaginamos que deveríamos ser amados por alguma essência de nosso ser. E amar "de verdade" seria gostar do outro, mesmo que ele não tivesse a profissão, o lugar social e a história que o tornaram quem ele é.
Como Favre amaria uma Marta "essencial", que não é prefeita, não foi deputada, não foi sexóloga e não fez uma escolha política na contramão de seus privilégios de nascença? Quem seria essa pessoa? Reciprocamente, como Marta amaria um Favre "essencial", que não seria franco-argentino e ex-trotskista?
Não somos essências, mas pacotes complexos. Amamos e somos amados com as mãos cheias das tralhas que acumulamos em nossas vidas prévias.
5) O comentário segundo o qual Favre desejaria não Marta, mas a prefeita, também subentende que Marta não seria desejável. O que é curioso: afinal, talvez Favre seja um "gato", mas Marta é uma mulher bonita.
Claro, vale o preconceito trivial sobre sexo depois dos 50, que não é muito diferente da expectativa de que a mãe (ainda mais a avó), não podendo ser virgem, seja casta.
Mas não é só isso. A idéia de que a prefeita não seria amável como mulher está a serviço de outro preconceito, segundo o qual a feminilidade não condiz com a autoridade de quem governa.
Acontece assim que, quando Marta escolhe uma roupa, uma maquiagem ou um corte de cabelo, chega o deboche: a prefeita é uma perua.
Perua seria a mulher que só pensa em agradar ao desejo masculino. A denominação satisfaz a boa consciência machista, pois parece inspirada por um feminismo militante: olhe só, debochamos da feminilidade "alienada" das mulheres que se enfeitam.
Nota: uma parte relevante do movimento feminista (as "pro-sex feminists") reivindica os apetrechos tradicionais da feminilidade. É um jeito de afirmar que a mulher liberada não precisa ser passiva e recatada nem vergonhosa de seu desejo ou de sua vontade de ser desejada. Ou seja, nem sempre a cinta-liga é marca de domínio.
Em suma, se Marta escolhe uma roupa sexy de Nina Ricci para seu casamento, é peruagem? Ou é possível que uma mulher seja prefeita sem deixar de ser feminina?
Enfim, a Marta Suplicy e a Luis Favre, sem ironia, desejo um casamento feliz.
quinta-feira, 25 de setembro de 2003
quinta-feira, 18 de setembro de 2003
Schwarzenegger governador da Califórnia
Muitos californianos não gostam de seu governador atual e querem removê-lo. Conforme a lei de seu Estado, eles apresentaram uma petição devidamente assinada por 12% dos eleitores. Portanto haverá um novo pleito (eventualmente com um atraso por razões técnicas).
Duas reflexões: uma sobre os charmes da democracia direta e outra sobre os comentários humorísticos ou indignados, pelo mundo afora, contra a candidatura do ator Arnold Schwarzenegger ao governo da Califórnia.
Quem não gosta de um pouco de democracia direta? Não seria uma boa se os mandatos fossem condicionais? Sem esperar as próximas eleições, a gente despediria os representantes que não fazem o que prometeram. Além disso, seria ótimo, de vez em quando, dispensar qualquer mediação e legiferar por referendo.
É uma idéia simpática e perigosa. No caso, o atual governador da Califórnia, Gray Davis, foi eleito porque, em sua maioria, os cidadãos da Califórnia gostavam de seu programa. Mas, logo, os mesmos cidadãos decidiram por referendo que os impostos estaduais nunca aumentariam. Conclusão: Davis ficou de babaca, com um programão e sem fundos para realizá-lo.
Seria como se todos esperássemos que Marta Suplicy limpasse São Paulo como se fosse uma mesa cirúrgica, mas pudéssemos decretar que não haveria imposto para a coleta do lixo nem aumento do IPTU.
Há uma inegável sabedoria no sistema representativo ordinário. Por exemplo, ele leva em conta nossa dificuldade crônica em pagar o preço de nossos desejos. Na vida cotidiana, isso nos paralisa (por exemplo: quero casar, mas preciso de absolutamente todas as gavetas da cômoda e detesto toalha molhada). Na vida política, a coisa não é diferente.
Mas vamos a Schwarzenegger. Entre os candidatos do Partido Republicano (que não é minha preferência no espectro político americano), ele não é o pior: é liberal em matéria de costumes e favorável ao aborto. Outro aspecto positivo: é um "self-made man"; fez sozinho e do zero não só sua fortuna mas também seu corpo. Além disso, Schwarzenegger mostrou que ele pode ter idéias erradas, mas, ao menos, são as suas próprias. Casou-se com uma Kennedy e não aderiu ao Partido Democrata e às idéias do clã de sua mulher.
Como nada indica que o ator seja mais burro ou menos honesto que os outros candidatos, por que razão sua candidatura é objeto universal de gozação?
Schwarzenegger não é um político. Isso deveria torná-lo mais simpático. Em geral, nas democracias, os eleitores consideram os políticos profissionais uma espécie daninha que prolifera no interstício entre os cidadãos e o exercício do poder que deveria ser deles.
Curiosamente, os mesmos cidadãos também menosprezam o homem comum que se candidata a um ofício público. Ele é acusado, no mínimo, de inexperiência: seu mérito (de não ser um político profissional) é transformado em fraqueza. Paradoxal, não é?
Suspeito que a candidatura do cidadão comum nos incomode porque denuncia nosso absenteísmo. Insistimos na incompetência do homem da rua que se candidata porque queremos justificar nossa preguiça cívica.
Mas, no caso de Schwarzenegger, não se trata só disso. Há uma outra condenação: "Logo um ator! E de que filmes!". Alguns acrescentam: "Outro?", evocando Ronald Reagan (que também era ator). Essa lembrança confirma o preconceito. Afinal, quem diria: "Um advogado não, já tivemos Clinton"? Ou: "Um administrador de empresas não, já tivemos Bush"?
A ambivalência em relação aos atores é coisa antiga. Desde a aurora da modernidade, eles são esperados (enfim, alguém vem nos divertir um pouco) e receados: nômades e devassos, enchem de sonhos perigosos as cabeças de nossas crianças. Às vezes, aliás, eles as levam consigo, como Mangiafuoco, o dono do circo de "Pinocchio". Conclusão: no fim do século 19, em Manhattan, era complicado achar uma igreja que aceitasse enterrar os atores mortos em terra consagrada.
Claro, os atores nos enganam: passam a vida fantasiados, encarnando personagens que pouco têm a ver com quem eles são de verdade. Mas será que nosso vizinho faz diferente quando desfila com um carro emprestado como se fosse dele?
Somos todos atores: o culto das aparências é a chave que nos liberta do destino que nos seria reservado pelo passado e por nossas castas de origem. O aprendizado da vida social moderna é uma escola de recitação. Para confirmação, basta ler Balzac e Stendhal.
Se desprezamos os atores, é porque desprezamos a "mentira" de nossas vidas.
Mas há mais: os atores vestem a pele dos heróis de nossos sonhos. Amamos os heróis. Por isso mesmo não toleramos que os atores tenham vida própria, a não ser que seja uma continuação de nossos devaneios. Vale tudo: amores, divórcios, festas, doenças, bebedeiras e mesmo uma inusitada vida caseira. Única condição: que seja mantida a aura da estrela e do sonho.
Ora, o ato político, mais que qualquer outro, nos lembra de que há alguém atrás da máscara.
Lembra das pedras em Regina Duarte quando ela apareceu na propaganda de Serra? Não era apenas animosidade partidária. Era por ela ser atriz. A Viúva Porcina, namoradinha do Brasil, se preocupa com governo e eleições? É uma cidadã como a gente?
Schwarzenegger governador da Califórnia? O exterminador do futuro tomaria o poder, mas isso é o de menos. O problema é que, se Schwarzenegger se eleger governador, perderemos o exterminador.
Duas reflexões: uma sobre os charmes da democracia direta e outra sobre os comentários humorísticos ou indignados, pelo mundo afora, contra a candidatura do ator Arnold Schwarzenegger ao governo da Califórnia.
Quem não gosta de um pouco de democracia direta? Não seria uma boa se os mandatos fossem condicionais? Sem esperar as próximas eleições, a gente despediria os representantes que não fazem o que prometeram. Além disso, seria ótimo, de vez em quando, dispensar qualquer mediação e legiferar por referendo.
É uma idéia simpática e perigosa. No caso, o atual governador da Califórnia, Gray Davis, foi eleito porque, em sua maioria, os cidadãos da Califórnia gostavam de seu programa. Mas, logo, os mesmos cidadãos decidiram por referendo que os impostos estaduais nunca aumentariam. Conclusão: Davis ficou de babaca, com um programão e sem fundos para realizá-lo.
Seria como se todos esperássemos que Marta Suplicy limpasse São Paulo como se fosse uma mesa cirúrgica, mas pudéssemos decretar que não haveria imposto para a coleta do lixo nem aumento do IPTU.
Há uma inegável sabedoria no sistema representativo ordinário. Por exemplo, ele leva em conta nossa dificuldade crônica em pagar o preço de nossos desejos. Na vida cotidiana, isso nos paralisa (por exemplo: quero casar, mas preciso de absolutamente todas as gavetas da cômoda e detesto toalha molhada). Na vida política, a coisa não é diferente.
Mas vamos a Schwarzenegger. Entre os candidatos do Partido Republicano (que não é minha preferência no espectro político americano), ele não é o pior: é liberal em matéria de costumes e favorável ao aborto. Outro aspecto positivo: é um "self-made man"; fez sozinho e do zero não só sua fortuna mas também seu corpo. Além disso, Schwarzenegger mostrou que ele pode ter idéias erradas, mas, ao menos, são as suas próprias. Casou-se com uma Kennedy e não aderiu ao Partido Democrata e às idéias do clã de sua mulher.
Como nada indica que o ator seja mais burro ou menos honesto que os outros candidatos, por que razão sua candidatura é objeto universal de gozação?
Schwarzenegger não é um político. Isso deveria torná-lo mais simpático. Em geral, nas democracias, os eleitores consideram os políticos profissionais uma espécie daninha que prolifera no interstício entre os cidadãos e o exercício do poder que deveria ser deles.
Curiosamente, os mesmos cidadãos também menosprezam o homem comum que se candidata a um ofício público. Ele é acusado, no mínimo, de inexperiência: seu mérito (de não ser um político profissional) é transformado em fraqueza. Paradoxal, não é?
Suspeito que a candidatura do cidadão comum nos incomode porque denuncia nosso absenteísmo. Insistimos na incompetência do homem da rua que se candidata porque queremos justificar nossa preguiça cívica.
Mas, no caso de Schwarzenegger, não se trata só disso. Há uma outra condenação: "Logo um ator! E de que filmes!". Alguns acrescentam: "Outro?", evocando Ronald Reagan (que também era ator). Essa lembrança confirma o preconceito. Afinal, quem diria: "Um advogado não, já tivemos Clinton"? Ou: "Um administrador de empresas não, já tivemos Bush"?
A ambivalência em relação aos atores é coisa antiga. Desde a aurora da modernidade, eles são esperados (enfim, alguém vem nos divertir um pouco) e receados: nômades e devassos, enchem de sonhos perigosos as cabeças de nossas crianças. Às vezes, aliás, eles as levam consigo, como Mangiafuoco, o dono do circo de "Pinocchio". Conclusão: no fim do século 19, em Manhattan, era complicado achar uma igreja que aceitasse enterrar os atores mortos em terra consagrada.
Claro, os atores nos enganam: passam a vida fantasiados, encarnando personagens que pouco têm a ver com quem eles são de verdade. Mas será que nosso vizinho faz diferente quando desfila com um carro emprestado como se fosse dele?
Somos todos atores: o culto das aparências é a chave que nos liberta do destino que nos seria reservado pelo passado e por nossas castas de origem. O aprendizado da vida social moderna é uma escola de recitação. Para confirmação, basta ler Balzac e Stendhal.
Se desprezamos os atores, é porque desprezamos a "mentira" de nossas vidas.
Mas há mais: os atores vestem a pele dos heróis de nossos sonhos. Amamos os heróis. Por isso mesmo não toleramos que os atores tenham vida própria, a não ser que seja uma continuação de nossos devaneios. Vale tudo: amores, divórcios, festas, doenças, bebedeiras e mesmo uma inusitada vida caseira. Única condição: que seja mantida a aura da estrela e do sonho.
Ora, o ato político, mais que qualquer outro, nos lembra de que há alguém atrás da máscara.
Lembra das pedras em Regina Duarte quando ela apareceu na propaganda de Serra? Não era apenas animosidade partidária. Era por ela ser atriz. A Viúva Porcina, namoradinha do Brasil, se preocupa com governo e eleições? É uma cidadã como a gente?
Schwarzenegger governador da Califórnia? O exterminador do futuro tomaria o poder, mas isso é o de menos. O problema é que, se Schwarzenegger se eleger governador, perderemos o exterminador.
quinta-feira, 11 de setembro de 2003
Fazer a coisa certa
Hoje é o segundo aniversário do ataque de 11 de setembro de 2001.
Nos primeiros dias após o atentado, a imprensa publicou os relatos dos parentes e dos amigos com quem as vítimas se comunicaram telefonicamente enquanto viviam sua última hora.
Mais tarde, vários sobreviventes escreveram suas memórias. O livro mais tocante talvez seja "Last Man Down: a New York City Fire Chief and the Collapse of the World Trade Center" (o último homem a descer: um chefe dos bombeiros de Nova York e o colapso do WTC), de Richard Picciotto (o oficial) e Daniel Paisner (o escritor que o ajudou na redação).
Recentemente, as autoridades do porto de Nova York tornaram públicas as gravações das chamadas que, na manhã do dia 11, foram recebidas e feitas pela central de segurança do World Trade Center. A imprensa americana reproduziu trechos.
Os livros e as dezenas de recortes de jornais e revistas estão em cima de minha mesa. No meio do luto e da tristeza pelas incertas sequelas do atentado, uma constatação salva o dia: é extraordinário como houve pessoas para fazer a coisa certa na hora do "vamos ver".
Há a força de espírito de muitas vítimas que, apesar da morte iminente, encontraram as palavras necessárias para que pudesse continuar a vida das pessoas amadas que lhes sobreviveriam. No último contato telefônico, esqueceram-se de seu desamparo para inventar um adeus que não condenasse o outro ao desespero.
E há mil gestos generosos que foram definidos como heróicos, mas que, no relato dos protagonistas, foram banais. O chefe Picciotto relata, por exemplo, sua subida à torre norte do World Trade Center e, sobretudo, sua descida. Depois do colapso da torre sul, ele mandou seus homens se colocarem a salvo e, com uma pequena tropa, continuou inspecionando cada andar para que ninguém fosse deixado para trás. Encontraram um grupo de inválidos que não podiam servir-se da escada. Começaram, então, a carregá-los, embora soubessem que provavelmente a torre na qual estavam também cairia, como aconteceu.
Picciotto foi encontrado horas mais tarde nos escombros, salvo milagrosamente por uma trave de sustentação que o abrigou.
Ora, ao ler essas histórias, sabemos imediatamente quem fez certo e quem fez errado.
Além disso, quem agiu "certo" não teve nem se deu o tempo de consultar princípios gerais ou modelos. Agiu sem hesitação e sem a consciência de um julgamento futuro em que ele poderia sair bem ou mal na foto.
O paradoxo moral que esses gestos "certos" nos propõem é o seguinte: existe, tanto nos protagonistas quanto em nós, leitores de suas gestas, um consenso imediato sobre o certo e o errado, e esse consenso não é propriamente o efeito de princípios comuns.
Claro, podemos adotar uma lista de preceitos morais instituídos: o decálogo, por exemplo. Mas logo estaremos discutindo infinitas exceções e casos particulares. Roubar é errado, mas o que pensar de Robin Hood? E a mãe que rouba uma laranja para o filho que morre de sede? Invejar é errado, mas quem dirá a diferença entre a inveja e a vontade de emular? Matar é errado, mas há a legítima defesa, a reação justificável e a eutanásia. E o que dizer do aborto? Desejar a mulher do vizinho é errado, está bem, mas e se o vizinho é um cão e a gente se apaixona?
A moral é um saber prático. Ao agir ou ao considerar as ações dos outros, sabemos o que é certo não tanto por referência racional a princípios gerais, mas porque compartilhamos experiências práticas parecidas. Se é que existe um fundo moral universal, ele não depende de um esforço racional, que seria o mesmo em todas as culturas; depende do fato de que, nas várias culturas, talvez se repitam formas básicas e comuns da experiência humana.
Os adolescentes têm razão quando acham ridículas nossas tentativas de lhes ensinar a moral à força de normas ou mesmo à força de exemplos, que, aliás, nunca se aplicam ao que eles estão vivendo. De qualquer forma, quando queremos ser exemplares, nossos atos perdem uma qualidade essencial: seu caráter espontâneo e imediato. Para transmitir algum senso moral, seria melhor simplesmente agir da maneira certa, sem fazer poses e sem recorrer a princípios.
Comecei esta coluna com o aniversário do 11 de Setembro, e eis que me ocorre mais um necrológio: poucos dias atrás, morreu Donald Davidson, aos 86 anos. Davidson era um dos maiores filósofos das últimas décadas (recentemente, em português, foi publicado "Ensaios sobre a Verdade"). Devemos-lhe uma crítica conclusiva (espera-se) do estilo racionalista cartesiano em matéria de pensamento e de busca da verdade.
Como é que, durante séculos, aceitamos como óbvio o "penso, logo existo", não sei. Mas, graças a Davidson, é possível entender que ninguém existe sozinho porque ninguém pensa sozinho. Está na hora de corrigir assim: "Converso com os outros, debato-me no mundo, logo existo". A verdade é fruto de encontros e diálogos concretos, não de deduções solitárias e abstratas.
Em matéria de moral, essa idéia é mais verdadeira ainda. Não há lições de moral nem exemplos ilustres. Só pessoas que, sem hesitar e sem saber por que, às vezes, fazem a coisa certa.
Nos primeiros dias após o atentado, a imprensa publicou os relatos dos parentes e dos amigos com quem as vítimas se comunicaram telefonicamente enquanto viviam sua última hora.
Mais tarde, vários sobreviventes escreveram suas memórias. O livro mais tocante talvez seja "Last Man Down: a New York City Fire Chief and the Collapse of the World Trade Center" (o último homem a descer: um chefe dos bombeiros de Nova York e o colapso do WTC), de Richard Picciotto (o oficial) e Daniel Paisner (o escritor que o ajudou na redação).
Recentemente, as autoridades do porto de Nova York tornaram públicas as gravações das chamadas que, na manhã do dia 11, foram recebidas e feitas pela central de segurança do World Trade Center. A imprensa americana reproduziu trechos.
Os livros e as dezenas de recortes de jornais e revistas estão em cima de minha mesa. No meio do luto e da tristeza pelas incertas sequelas do atentado, uma constatação salva o dia: é extraordinário como houve pessoas para fazer a coisa certa na hora do "vamos ver".
Há a força de espírito de muitas vítimas que, apesar da morte iminente, encontraram as palavras necessárias para que pudesse continuar a vida das pessoas amadas que lhes sobreviveriam. No último contato telefônico, esqueceram-se de seu desamparo para inventar um adeus que não condenasse o outro ao desespero.
E há mil gestos generosos que foram definidos como heróicos, mas que, no relato dos protagonistas, foram banais. O chefe Picciotto relata, por exemplo, sua subida à torre norte do World Trade Center e, sobretudo, sua descida. Depois do colapso da torre sul, ele mandou seus homens se colocarem a salvo e, com uma pequena tropa, continuou inspecionando cada andar para que ninguém fosse deixado para trás. Encontraram um grupo de inválidos que não podiam servir-se da escada. Começaram, então, a carregá-los, embora soubessem que provavelmente a torre na qual estavam também cairia, como aconteceu.
Picciotto foi encontrado horas mais tarde nos escombros, salvo milagrosamente por uma trave de sustentação que o abrigou.
Ora, ao ler essas histórias, sabemos imediatamente quem fez certo e quem fez errado.
Além disso, quem agiu "certo" não teve nem se deu o tempo de consultar princípios gerais ou modelos. Agiu sem hesitação e sem a consciência de um julgamento futuro em que ele poderia sair bem ou mal na foto.
O paradoxo moral que esses gestos "certos" nos propõem é o seguinte: existe, tanto nos protagonistas quanto em nós, leitores de suas gestas, um consenso imediato sobre o certo e o errado, e esse consenso não é propriamente o efeito de princípios comuns.
Claro, podemos adotar uma lista de preceitos morais instituídos: o decálogo, por exemplo. Mas logo estaremos discutindo infinitas exceções e casos particulares. Roubar é errado, mas o que pensar de Robin Hood? E a mãe que rouba uma laranja para o filho que morre de sede? Invejar é errado, mas quem dirá a diferença entre a inveja e a vontade de emular? Matar é errado, mas há a legítima defesa, a reação justificável e a eutanásia. E o que dizer do aborto? Desejar a mulher do vizinho é errado, está bem, mas e se o vizinho é um cão e a gente se apaixona?
A moral é um saber prático. Ao agir ou ao considerar as ações dos outros, sabemos o que é certo não tanto por referência racional a princípios gerais, mas porque compartilhamos experiências práticas parecidas. Se é que existe um fundo moral universal, ele não depende de um esforço racional, que seria o mesmo em todas as culturas; depende do fato de que, nas várias culturas, talvez se repitam formas básicas e comuns da experiência humana.
Os adolescentes têm razão quando acham ridículas nossas tentativas de lhes ensinar a moral à força de normas ou mesmo à força de exemplos, que, aliás, nunca se aplicam ao que eles estão vivendo. De qualquer forma, quando queremos ser exemplares, nossos atos perdem uma qualidade essencial: seu caráter espontâneo e imediato. Para transmitir algum senso moral, seria melhor simplesmente agir da maneira certa, sem fazer poses e sem recorrer a princípios.
Comecei esta coluna com o aniversário do 11 de Setembro, e eis que me ocorre mais um necrológio: poucos dias atrás, morreu Donald Davidson, aos 86 anos. Davidson era um dos maiores filósofos das últimas décadas (recentemente, em português, foi publicado "Ensaios sobre a Verdade"). Devemos-lhe uma crítica conclusiva (espera-se) do estilo racionalista cartesiano em matéria de pensamento e de busca da verdade.
Como é que, durante séculos, aceitamos como óbvio o "penso, logo existo", não sei. Mas, graças a Davidson, é possível entender que ninguém existe sozinho porque ninguém pensa sozinho. Está na hora de corrigir assim: "Converso com os outros, debato-me no mundo, logo existo". A verdade é fruto de encontros e diálogos concretos, não de deduções solitárias e abstratas.
Em matéria de moral, essa idéia é mais verdadeira ainda. Não há lições de moral nem exemplos ilustres. Só pessoas que, sem hesitar e sem saber por que, às vezes, fazem a coisa certa.
quinta-feira, 4 de setembro de 2003
Contas do passado e dificuldades do presente
Na última quinta-feira, comentei um processo que corre nestes dias nos EUA. Alguns cidadãos americanos negros e descendentes de escravos pedem reparação a companhias que lucraram com a escravatura.
Minha posição era a seguinte: simpatizo e aprovo, mas constato também que, em regra, as contas do passado atrapalham singularmente a vida de todos, a começar pela dos próprios credores e beneficiários.
Veja o que acontece em muitos divórcios. Mesmo que não haja bens para serem compartilhados, é frequente que os divorciados passem anos (se não o restante de sua existência) resmungando queixas. Eles desistem da vida para encarnar, aos olhos do mundo e aos seus próprios, a triste figura de quem foi injustiçado.
A razão dessa escolha é dupla.
Há a expectativa de que as feridas mostradas inspirem nos outros um carinho especial: tratem-me com cuidado, amem-me como um veterano inválido. Desastre: os interlocutores aguentam dificilmente, não por serem desprovidos de coração, mas porque são assim chamados à tarefa impossível de compensar perdas e dores e, portanto, confrontados com uma inevitável (e desagradável) impotência.
E há uma outra razão, mais decisiva. Nossa vida comporta sempre uma dose certa de frustrações. Atribuir falhas e malogros a uma causa definida é uma grande consolação. Não sei encontrar novos amigos e amores? É que sacrifiquei meus melhores anos a um casamento que me arrasou. Meu orçamento estoura a cada mês? É que o maldito (ou a maldita) foi embora com meu dinheiro. Não saio da depressão? É que o outro (ou a outra) levou consigo minha vontade de viver.
Vantagens presumidas e aparentes. As dores da vida me afligem, mas não são da minha conta. Meu (ou minha) "ex" é culpado (ou culpada), e todos os outros me devem comiseração e compensações.
Desvantagens efetivas. Os outros fogem de mim, eu fico só e parado (ou parada): a contabilidade do passado me impede de transformar a vida presente. A complacência com minhas condecorações de injustiçado ou injustiçada me distrai, permite que esqueça os estorvos de hoje, nos quais talvez eu pudesse intervir, se os reconhecesse.
Mas qual é a relação entre esse estado de espírito banal e as reivindicações de quem pede políticas que compensem o passado escravagista?
Uma analogia seria comprovada se ficasse claro que a atenção dada às contas do passado pode esconder outras iniquidades e contradições, cuja solução não depende de ressarcimentos.
Ora, a Century Foundation americana acaba de publicar a pesquisa "Socioeconomic Status, Race/Ethnicity and Selective College Admissions" (Status Socioeconômico, Raça/Etnia e Admissões Seletivas à Universidade; o texto é acessível no site da fundação, www.tcf.org).
Foram escolhidas as 146 universidades mais seletivas dos EUA, e a população americana foi dividida em três faixas: 50% de classe média, 25% de privilegiados e 25% de desfavorecidos.
Constatou-se que, nas ditas universidades, 74% dos estudantes provêm da faixa mais privilegiada da sociedade americana, que representa 25% da população. Inversamente, só 3% dos estudantes pertencem ao quarto mais pobre.
Fato crucial: essa desproporção não coincide com as disparidades relativas à raça ou à etnia. Negros e hispânicos constituem mais de um quarto da população americana. Nas universidades de destaque, os jovens dessas origens étnicas são, hoje, 12% do corpo estudantil. Num mundo ideal, sem racismo e sem passivo escravagista, sua percentagem deveria ser igual à da população negra ou hispânica (mais de 25%). Em suma, a discriminação e seus restos dividem pela metade o contingente dos estudantes negros e hispânicos.
Agora compare essa disparidade com a outra já mencionada: só 3% dos estudantes provêm do quarto menos favorecido da população.
Como tanto o grupo dos menos favorecidos quanto o dos negros e hispânicos constituem aproximadamente um quarto da sociedade americana, é legítimo surpreender-se com o seguinte: passeando pelos campi das melhores universidades, você tem quatro vezes mais chances de encontrar um estudante negro ou hispânico que de encontrar um estudante pobre.
Numa ótica liberal, uma composição do corpo estudantil que reflita a percentagem dos diferentes grupos sociais (étnicos e econômicos) é desejável. Pois as desigualdades produzidas por nossa organização social e produtiva são toleráveis e toleradas graças à promessa de que haja uma chance de mobilidade social aberta a todos. Por isso, consideramos justo que, no ensino superior, todos os grupos sociais sejam representados de maneira compatível com sua relevância numérica no conjunto da população.
Desse ponto de vista, a injustiça contra os pobres, na sociedade americana de hoje, é quatro vezes mais dramática que a injustiça contra minorias étnicas.
Por que, então, nos debates políticos e midiáticos, só se fala de ações afirmativas em favor de minorias étnicas?
Volte ao caso dos divorciados: contabilizar e mesmo compensar as dívidas do passado é mais cômodo do que encarar as contradições do presente.
Minha posição era a seguinte: simpatizo e aprovo, mas constato também que, em regra, as contas do passado atrapalham singularmente a vida de todos, a começar pela dos próprios credores e beneficiários.
Veja o que acontece em muitos divórcios. Mesmo que não haja bens para serem compartilhados, é frequente que os divorciados passem anos (se não o restante de sua existência) resmungando queixas. Eles desistem da vida para encarnar, aos olhos do mundo e aos seus próprios, a triste figura de quem foi injustiçado.
A razão dessa escolha é dupla.
Há a expectativa de que as feridas mostradas inspirem nos outros um carinho especial: tratem-me com cuidado, amem-me como um veterano inválido. Desastre: os interlocutores aguentam dificilmente, não por serem desprovidos de coração, mas porque são assim chamados à tarefa impossível de compensar perdas e dores e, portanto, confrontados com uma inevitável (e desagradável) impotência.
E há uma outra razão, mais decisiva. Nossa vida comporta sempre uma dose certa de frustrações. Atribuir falhas e malogros a uma causa definida é uma grande consolação. Não sei encontrar novos amigos e amores? É que sacrifiquei meus melhores anos a um casamento que me arrasou. Meu orçamento estoura a cada mês? É que o maldito (ou a maldita) foi embora com meu dinheiro. Não saio da depressão? É que o outro (ou a outra) levou consigo minha vontade de viver.
Vantagens presumidas e aparentes. As dores da vida me afligem, mas não são da minha conta. Meu (ou minha) "ex" é culpado (ou culpada), e todos os outros me devem comiseração e compensações.
Desvantagens efetivas. Os outros fogem de mim, eu fico só e parado (ou parada): a contabilidade do passado me impede de transformar a vida presente. A complacência com minhas condecorações de injustiçado ou injustiçada me distrai, permite que esqueça os estorvos de hoje, nos quais talvez eu pudesse intervir, se os reconhecesse.
Mas qual é a relação entre esse estado de espírito banal e as reivindicações de quem pede políticas que compensem o passado escravagista?
Uma analogia seria comprovada se ficasse claro que a atenção dada às contas do passado pode esconder outras iniquidades e contradições, cuja solução não depende de ressarcimentos.
Ora, a Century Foundation americana acaba de publicar a pesquisa "Socioeconomic Status, Race/Ethnicity and Selective College Admissions" (Status Socioeconômico, Raça/Etnia e Admissões Seletivas à Universidade; o texto é acessível no site da fundação, www.tcf.org).
Foram escolhidas as 146 universidades mais seletivas dos EUA, e a população americana foi dividida em três faixas: 50% de classe média, 25% de privilegiados e 25% de desfavorecidos.
Constatou-se que, nas ditas universidades, 74% dos estudantes provêm da faixa mais privilegiada da sociedade americana, que representa 25% da população. Inversamente, só 3% dos estudantes pertencem ao quarto mais pobre.
Fato crucial: essa desproporção não coincide com as disparidades relativas à raça ou à etnia. Negros e hispânicos constituem mais de um quarto da população americana. Nas universidades de destaque, os jovens dessas origens étnicas são, hoje, 12% do corpo estudantil. Num mundo ideal, sem racismo e sem passivo escravagista, sua percentagem deveria ser igual à da população negra ou hispânica (mais de 25%). Em suma, a discriminação e seus restos dividem pela metade o contingente dos estudantes negros e hispânicos.
Agora compare essa disparidade com a outra já mencionada: só 3% dos estudantes provêm do quarto menos favorecido da população.
Como tanto o grupo dos menos favorecidos quanto o dos negros e hispânicos constituem aproximadamente um quarto da sociedade americana, é legítimo surpreender-se com o seguinte: passeando pelos campi das melhores universidades, você tem quatro vezes mais chances de encontrar um estudante negro ou hispânico que de encontrar um estudante pobre.
Numa ótica liberal, uma composição do corpo estudantil que reflita a percentagem dos diferentes grupos sociais (étnicos e econômicos) é desejável. Pois as desigualdades produzidas por nossa organização social e produtiva são toleráveis e toleradas graças à promessa de que haja uma chance de mobilidade social aberta a todos. Por isso, consideramos justo que, no ensino superior, todos os grupos sociais sejam representados de maneira compatível com sua relevância numérica no conjunto da população.
Desse ponto de vista, a injustiça contra os pobres, na sociedade americana de hoje, é quatro vezes mais dramática que a injustiça contra minorias étnicas.
Por que, então, nos debates políticos e midiáticos, só se fala de ações afirmativas em favor de minorias étnicas?
Volte ao caso dos divorciados: contabilizar e mesmo compensar as dívidas do passado é mais cômodo do que encarar as contradições do presente.
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