Volta e meia, me perguntam: "Por que pagar a um profissional, se posso conversar de graça com o pastor ou com a mãe-de-santo? Não é lógico que os amigos do peito me entendam melhor que um desconhecido? Qual é a diferença entre um psicoterapeuta e um padre que escuta, aconselha e pode nos absolver dos pecados? ".
A diferença é simples: o psicoterapeuta é formado em (alguma) psicoterapia, os outros não. Os interlocutores insistem: formado como?
Aqui, uma distinção. Algumas terapias, como as comportamentais (especialmente eficazes na cura das fobias), requerem do terapeuta que aprenda e treine exaustivamente técnicas que possam mudar a conduta que atrapalha o paciente.
Outras terapias intervêm na dinâmica das motivações conscientes ou inconscientes de quem sofre (a psicanálise é uma delas). Aqui a formação pede que o terapeuta se submeta ao mesmo processo que é proposto a seus pacientes. Mais: pede que, de alguma forma, ele permaneça sempre nesse processo. O psicanalista, por exemplo, não pára de analisar-se. É uma precaução: tenta-se evitar que interfiram nas curas motivações do terapeuta que ele mesmo ignoraria. Mas há outra razão: o entendimento das motivações dos outros é proporcional ao entendimento de nós mesmos que temos a coragem de encarar. O terapeuta é como um cirurgião que, ao operar, praticasse uma vivissecção em seu próprio corpo para reconhecer melhor os órgãos internos do paciente.
Volto às perguntas iniciais. Claro, são pequenas investidas que evocam as declarações de amor do jardim-de-infância, quando puxávamos o cabelo dos colegas para que nos dessem atenção. Essa maneira infantil de provocar ou ferir o outro para lhe oferecer e pedir amor tem futuro. Aflige o adolescente para quem decepcionar os pais é o jeito de esconder (e dizer) um afeto do qual ele se envergonha, porque confirmaria sua dependência. E há casais que vivem na guerrilha, ambos transformando sua dificuldade para demandar amor ou para ser amados num cotidiano de ataques mesquinhos.
Quase sempre a coisa começa com um drama nos primeiros anos de vida: um pai que manifesta seu cuidado só xingando ou uma mãe que acaricia com a esquerda e bate com a direita. Sobra uma incerteza nefasta: qual é a prova do amor, carinho ou chicotada (real e metafórica)?
Ora, posso ler essa interpretação banal num livro ou numa coluna de jornal. Mas só a "conheço" porque, durante anos, tentei entender como era possível que, na infância, eu acordasse pasmo e angustiado com sonhos em que era atormentado por adultos sorridentes.
Esse exemplo é benigno. Qualquer terapeuta está disposto a encontrar dentro de si inquietações mais turvas e cicatrizes mais supuradas. Pois desses encontros depende sua capacidade de escutar.
Keith Ablow é um psiquiatra e terapeuta de Boston, EUA. Escreve romances que já comentei e que deveriam ser leitura obrigatória nos cursos de psicologia clínica. O último é "Psycho-Path" (psicopata ou caminho da psique). Um dos personagens é um psiquiatra infantil, genial e enlouquecido. Um dia (a revelação deste episódio menor não estragará a leitura), ele atende um menino vítima de abusos físicos, mas decidido a não denunciar os pais. O psiquiatra consegue ganhar a confiança da criança e descobre que o abusador é a mãe, enquanto o pai assiste passivo.
Numa sessão milagrosa, ele tenta levar o pai a situar-se do lado do menino. Convencido de ter conseguido, manda a criança para casa sob os cuidados paternos. No dia seguinte, a mãe assassina o menino diante do pai, mais uma vez silencioso. O psiquiatra, como lhe grita na cara uma colega, condenou o menino por falta de vivissecção. Ele "esqueceu" que a raiz de sua própria loucura estava justamente na covardia de um pai que nunca soubera protegê-lo na infância. O menino foi ao matadouro porque o terapeuta quis emendar a tragédia de sua própria vida acreditando num final feliz para seu paciente.
Romanceado? Nem tanto. As apostas em muitas curas não são menos extremas.
Não estranha que os terapeutas (ao menos os psicanalistas, que conheço melhor) mostrem ao mundo, frequentemente, uma face de desoladora normalidade social. Ou que a história institucional da psicanálise se pareça com a crônica de um clube de notáveis de província, preocupados com o lugar que lhes é reservado no banquete anual. É uma compensação compreensível: o exercício de uma terapia dinâmica implica, para o terapeuta, um esforço que beira a insanidade mental e consiste em habitar os porões em que ele encontra suas verdades e, com elas, as verdades de seus pacientes.
PS: Meses atrás, uma igreja evangélica decidiu tornar-se escola de psicanálise e tentou promover no Congresso uma lei pela qual ela teria a autoridade nacional para outorgar o "título" de psicanalista. Fora o fato de psicanalista estar mais para rodapé que para título, é certo que um cristão pode perfeitamente ser psicanalista: pede-se apenas que ouse encarar sua fé como um dos demônios de sua história.
Mas uma igreja não pode ser uma instituição de ensino de psicoterapia, pois formar terapeutas é o exato contrário de propagar uma crença.
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