Estréia hoje, no Brasil, "Um Ato de Coragem". Nos EUA, o grande público adorou, e muitos críticos não gostaram.
O filme conta a história de John Q. (Denzel Washington), cujo filho precisa de um transplante de coração. Infelizmente, John situa-se numa zona cinzenta da sociedade americana: ele não é miserável (portanto não tem direito à assistência médica gratuita), mas seu emprego precário garante apenas um seguro de saúde limitado. Conclusão: ninguém quer pagar a operação que salvaria a vida do menino. Quem não recorreria a atos extremos? Garanto que os espectadores torcerão por John.
É difícil que a situação do filme aconteça nos EUA: alguma entidade filantrópica pagaria a conta. Mas isso não impediu o sucesso de "Um Ato de Coragem". Pois, há tempo, sobretudo entre os menos favorecidos, vinga um protesto indignado contra as seguradoras que gerenciam o sistema de saúde, apitando mais do que os próprios médicos.
Ao comentar o sucesso do filme, alguns críticos arrebitaram o nariz e salientaram a importância, no cinema americano, de um filão populista: filmes feitos para confirmar e bajular as idéias e os sentimentos populares estabelecidos. Nessa ocasião, D. Denby, na "New Yorker" (4/3/02), propôs uma distinção entre dois populismos: de esquerda e de direita.
O populismo americano de esquerda exaltaria o pequeno indivíduo contra a prepotência dos grandes complexos administrativos, industriais e políticos. Por exemplo, "Um Ato de Coragem" apresenta a luta do trabalhador americano contra o sistema de saúde. "Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento" (Oscar para Julia Roberts) era o grito de justiça dos humildes envenenados pela indústria química. Mais recentemente, "Uma Lição de Amor" apresentou uma dinâmica parecida: para manter a guarda da filha, um pai com uma deficiência mental média (Sean Penn) enfrenta o poderoso Departamento de Serviços Sociais, que sempre sabe qual é o "melhor interesse" das crianças (sobretudo quando os pais da dita criança são pobres e não são assistidos por um advogado competente).
O populismo de direita seria exemplificado pelas histórias de cidadãos vigilantes, que fazem justiça com suas mãos. O último (e fracassado) filme com Schwarzenegger, "Efeito Colateral", é um exemplo: um bombeiro, sozinho, vinga filho e mulher assassinados num atentado terrorista. O esquema é clássico: pense em todos os filmes em que Charles Bronson sai matando criminosos porque a polícia tem o rabo preso. Ou pense nas aventuras do inspetor Harry Callahan (Clint Eastwood), que se ergue contra a corrupção de seus colegas.
Em suma, o populismo de "Um Ato de Coragem" sonharia com o indivíduo opondo-se aos poderosos (revolta de esquerda). O populismo dos vigilantes sonharia com o indivíduo assumindo as funções do Estado (atitude autoritária e, portanto, de direita).
Mas a fronteira entre as duas categorias é tênue. Abundam os filmes difíceis de situar com clareza. Veja, por exemplo, "Rambo Programado para Matar" (o primeiro da série e o único que vale a pena): é populista de esquerda ou de direita?
É banal que intelectuais bem pensantes tentem aplicar à cultura americana categorias interpretativas que fazem sentido na Europa ou na América do Sul, mas que são pouco pertinentes nos EUA. A diferença entre populismo de direita e populismo de esquerda talvez seja uma dessas tentativas, pois, no mínimo, é necessário reconhecer que, nos EUA, esses dois populismos, pretensamente opostos, alegram o mesmo povo.
Há uma maneira simples de conhecer o público de um filme. Em regra, nos EUA, na estréia, os filmes são exibidos num grande número de salas. Quando a receita do dia fica abaixo de um valor determinado, as salas interrompem a programação. Para conhecer aproximadamente a composição do público que gosta de um filme, observa-se quais são (e onde são localizadas) as salas que continuam programando o filme em fim de carreira.
"Um Ato de Coragem", depois do ímpeto inicial, sobreviveu um bom tempo nos bairros periféricos de pequena classe média. Mesma coisa para "Uma Lição de Amor". Ora, as salas desses bairros são aquelas onde também sobrevivem os filmes populistas supostamente de direita. O vigilante "Efeito Colateral" durou pouco nas salas centrais, mas fez sua carreira nas mesmas salas de periferia onde mais viveram "Um Ato de Coragem" e "Uma Lição de Amor", filmes populistas ditos de esquerda.
Em suma, os pretensos dois populismos, de esquerda e de direita, encontram as graças de um público só. Não deve surpreender que os mesmos espectadores se deleitem com Schwarzenegger vigilante ou com John Q. e Erin Brockovich, pois esses filmes têm algo em comum: são epopéias do indivíduo.
À condição de esquecer categorias culturais importadas, é fácil reconhecer que há um denominador comum em todos os sonhos americanos: a luta do homem sozinho, seja ela contra quem for. Lisonjear a ideologia popular, ser populista, nos EUA, significa exaltar a autoconfiança do indivíduo. Em qualquer circunstância.
quinta-feira, 30 de maio de 2002
quinta-feira, 23 de maio de 2002
Maluf na cabeça
Na quinta-feira passada, a Folha publicou uma pesquisa das intenções de voto para governador de São Paulo. Nas várias simulações, Paulo Maluf, tecnicamente empatado com outro candidato ou não, situava-se em primeiro lugar - entre 33 e 37% das intenções de voto.
Parece um sucesso da legalidade democrática: até que a Justiça chegue a um veredicto, as acusações não devem desqualificar ninguém. Por mais que as suspeitas de enriquecimento indevido sejam fortes, nós não somos nem júri nem juiz.
Mas fico perplexo: em regra, essas precauções são apenas nominais. Quase sempre, antes que o processo comece, a opinião pública condena e lincha. Em caso de absolvição, ela fica desconfiada, repetindo que não há fumaça sem fogo. Como entender, então, que mais de um paulista em cada três planeje votar em Maluf? À primeira vista, só haveria duas explicações.
Primeira explicação. Quem quer votar em Maluf é uma exceção: ele não se deixa influenciar por jornalistas e procuradores da República. Só acreditará em corrupção no dia em que a Justiça confirmar as acusações.
Segunda explicação, mais triste: o dito paulista-em-cada-três seria completamente desinformado. Alérgico ao noticiário, ele não saberia nada das acusações recentes e passadas contra Paulo Maluf.
Ora, nos últimos dias, conversei com vários futuros eleitores de Maluf em restaurantes de comida por quilo, pontos de táxi, botecos, cafés, bancos e no terraço comum do prédio onde moro. As duas explicações mencionadas desmoronaram. Pois todos me pareceram bem informados: conheciam até a geografia dos indícios mais recentes, da Suíça à ilha de Jersey. Será, então, que duvidavam das acusações? Ou, melhor, que conseguiam suspender seu juízo na espera da decisão da Justiça? Nada disso. Todos acreditavam explicitamente que seu candidato preferido fosse culpado das acusações levantadas contra ele. Mais: eles pareciam supor, jocosamente, que as acusações em questão fossem apenas a ponta de um iceberg.
Se essa atitude vale para um terço dos eleitores, estamos em maus lençóis. Mas não porque Paulo Maluf seria culpado ou não, eleito ou não. Isso pouco importa. Que haja políticos corruptos ou não torna-se irrelevante diante da constatação seguinte: há eleitores escolhendo um candidato que, segundo eles mesmos, seria um corrupto de marca maior. Em outras palavras, a eventual corrupção dos políticos é um fato benigno. O verdadeiro escândalo é o possível amor dos eleitores pelos corruptos.
Uma racionalização foi-me oferecida regularmente pelos simpatizantes de Maluf: ele "faz". Para demonstrar essa eficiência, seus eleitores mencionaram algumas obras. E logo declararam que, nessas obras, devia ter havido superfaturamento e roubo. Fiquei sem saber se o candidato conquistava a admiração desses eleitores pelas obras executadas ou pelo saque das finanças públicas que, na própria opinião deles, as ditas obras teriam proporcionado.
Aqui, nenhum paradoxo ou contradição: os eleitores que escolhem um candidato que eles mesmos julgam corrupto não votam apesar das acusações que pesam sobre o candidato, mas por causa delas.
Eis, então, o fato político mais inquietante do que a possível corrupção dos candidatos: há eleitores que parecem reconhecer na corrupção a marca autêntica do poder e que votam em consequência. A corrupção (hipotética ou comprovada, tanto faz) é, para esses eleitores, um traço ideal dos candidatos. Como pode?
Quem escolhe representantes para administrar uma comunidade da qual ele é (e se sente) membro não vota em corrupto. Ele não gosta de deixar a coisa pública em mãos duvidosas, pois protege a coisa pública como um bem que seria de todos - portanto, também dele.
Mas suponha que estejamos juntos neste território como os colonizadores que o desbravaram. Não compartilharíamos comunidade alguma. Cada um de nós alimentaria o sonho de acumular o máximo de riquezas e levá-las para seu barco. Danem-se os outros. Nesse caso, se tivéssemos que eleger um chefe, em quem votaríamos? O mais corrupto e mais desrespeitoso da legalidade seria o melhor para nos conduzir no saque da terra que estamos explorando.
Na escolha eleitoral do candidato corrupto, o cinismo contemporâneo parece coincidir com os piores restos culturais da exploração colonial.
Em suma, a pesquisa de quinta-feira revela que um candidato acusado de corrupção está na cabeça das pesquisas. Nenhum problema: ele é inocente até decisão judicial. Mas é extraordinário que, para alguns de seus eleitores, ele pareça ser preferido justamente por ser (presumivelmente) corrupto. Na cabeça desses cidadãos, não pode estar o sonho de uma comunidade, mas a esperança de encontrar um líder para suas próprias ambições predatórias.
Detalhe engraçado: alguns desses eleitores prometem que seu candidato devolverá a segurança às nossas ruas. Vai ser complicado. Pois a criminalidade é uma versão armada do espírito de saque o mesmo espírito que fomenta a escolha eleitoral de quem deseja ser governado por um corrupto.
Parece um sucesso da legalidade democrática: até que a Justiça chegue a um veredicto, as acusações não devem desqualificar ninguém. Por mais que as suspeitas de enriquecimento indevido sejam fortes, nós não somos nem júri nem juiz.
Mas fico perplexo: em regra, essas precauções são apenas nominais. Quase sempre, antes que o processo comece, a opinião pública condena e lincha. Em caso de absolvição, ela fica desconfiada, repetindo que não há fumaça sem fogo. Como entender, então, que mais de um paulista em cada três planeje votar em Maluf? À primeira vista, só haveria duas explicações.
Primeira explicação. Quem quer votar em Maluf é uma exceção: ele não se deixa influenciar por jornalistas e procuradores da República. Só acreditará em corrupção no dia em que a Justiça confirmar as acusações.
Segunda explicação, mais triste: o dito paulista-em-cada-três seria completamente desinformado. Alérgico ao noticiário, ele não saberia nada das acusações recentes e passadas contra Paulo Maluf.
Ora, nos últimos dias, conversei com vários futuros eleitores de Maluf em restaurantes de comida por quilo, pontos de táxi, botecos, cafés, bancos e no terraço comum do prédio onde moro. As duas explicações mencionadas desmoronaram. Pois todos me pareceram bem informados: conheciam até a geografia dos indícios mais recentes, da Suíça à ilha de Jersey. Será, então, que duvidavam das acusações? Ou, melhor, que conseguiam suspender seu juízo na espera da decisão da Justiça? Nada disso. Todos acreditavam explicitamente que seu candidato preferido fosse culpado das acusações levantadas contra ele. Mais: eles pareciam supor, jocosamente, que as acusações em questão fossem apenas a ponta de um iceberg.
Se essa atitude vale para um terço dos eleitores, estamos em maus lençóis. Mas não porque Paulo Maluf seria culpado ou não, eleito ou não. Isso pouco importa. Que haja políticos corruptos ou não torna-se irrelevante diante da constatação seguinte: há eleitores escolhendo um candidato que, segundo eles mesmos, seria um corrupto de marca maior. Em outras palavras, a eventual corrupção dos políticos é um fato benigno. O verdadeiro escândalo é o possível amor dos eleitores pelos corruptos.
Uma racionalização foi-me oferecida regularmente pelos simpatizantes de Maluf: ele "faz". Para demonstrar essa eficiência, seus eleitores mencionaram algumas obras. E logo declararam que, nessas obras, devia ter havido superfaturamento e roubo. Fiquei sem saber se o candidato conquistava a admiração desses eleitores pelas obras executadas ou pelo saque das finanças públicas que, na própria opinião deles, as ditas obras teriam proporcionado.
Aqui, nenhum paradoxo ou contradição: os eleitores que escolhem um candidato que eles mesmos julgam corrupto não votam apesar das acusações que pesam sobre o candidato, mas por causa delas.
Eis, então, o fato político mais inquietante do que a possível corrupção dos candidatos: há eleitores que parecem reconhecer na corrupção a marca autêntica do poder e que votam em consequência. A corrupção (hipotética ou comprovada, tanto faz) é, para esses eleitores, um traço ideal dos candidatos. Como pode?
Quem escolhe representantes para administrar uma comunidade da qual ele é (e se sente) membro não vota em corrupto. Ele não gosta de deixar a coisa pública em mãos duvidosas, pois protege a coisa pública como um bem que seria de todos - portanto, também dele.
Mas suponha que estejamos juntos neste território como os colonizadores que o desbravaram. Não compartilharíamos comunidade alguma. Cada um de nós alimentaria o sonho de acumular o máximo de riquezas e levá-las para seu barco. Danem-se os outros. Nesse caso, se tivéssemos que eleger um chefe, em quem votaríamos? O mais corrupto e mais desrespeitoso da legalidade seria o melhor para nos conduzir no saque da terra que estamos explorando.
Na escolha eleitoral do candidato corrupto, o cinismo contemporâneo parece coincidir com os piores restos culturais da exploração colonial.
Em suma, a pesquisa de quinta-feira revela que um candidato acusado de corrupção está na cabeça das pesquisas. Nenhum problema: ele é inocente até decisão judicial. Mas é extraordinário que, para alguns de seus eleitores, ele pareça ser preferido justamente por ser (presumivelmente) corrupto. Na cabeça desses cidadãos, não pode estar o sonho de uma comunidade, mas a esperança de encontrar um líder para suas próprias ambições predatórias.
Detalhe engraçado: alguns desses eleitores prometem que seu candidato devolverá a segurança às nossas ruas. Vai ser complicado. Pois a criminalidade é uma versão armada do espírito de saque o mesmo espírito que fomenta a escolha eleitoral de quem deseja ser governado por um corrupto.
quinta-feira, 16 de maio de 2002
O Homem-Aranha e o "american way"
"Homem-Aranha" pré-estréia hoje no Brasil. Nos EUA, o filme estabeleceu dois recordes: arrecadou US$ 114,8 milhões no primeiro fim de semana e mais US$ 72 milhões no segundo.
Muitos comentam que isso era previsível: no 11 de setembro, fez falta um super-herói que parasse os aviões, salvasse os passageiros e desse umas boas chapoletadas nos terroristas. O Homem-Aranha, sendo nova-iorquino, seria perfeito.
É possível que o sucesso do lançamento americano tenha a ver com o ataque do 11 de setembro. Mas o filme não é apenas um sonho infantil, em que aparece o objeto de nossos anseios do tipo: "Quer um super-herói? Lá vai ele".
Certo, é impossível viver nos EUA, hoje, sem levantar os olhos, com apreensão, quando um avião voa baixo. No entanto o desejo de ver super-heróis patrulhando o céu e, quem sabe, participando da guerra é menos importante do que a pergunta aberta pelo novo conflito: "Além da vingança, qual é nossa razão para lutar?". Um ataque e uma guerra só podem criar a necessidade de redefinir o sentido da comunidade nacional.
O Super-Homem dizia que ele lutava pela justiça, pela liberdade e pelo "american way". Mas o que é, hoje, o "american way"? Ironicamente, alguém sugerirá: é a bolha da Bolsa de Valores dos anos 90? É a gestão da Enron? A prudência de Greenspan? O yuppismo dos anos 80? A contracultura dos 60? A raiva de Timothy McVeigh?
Provavelmente, o futuro do dito império americano depende da capacidade de o país descobrir mais uma vez sua razão de ser. É uma missão não para os marines, mas para a cultura popular. "Homem-Aranha", embora tenha sido realizado antes do 11 de setembro, responde a esse chamado.
Como quase todos os super-heróis, Peter Parker, um adolescente da pequena classe média, tímido e estudioso, é órfão. Lembrete: o sujeito americano é aquele que, para fazer a América, sepulta seus antepassados e decide afirmar-se por seus esforços próprios.
Por acidente, Peter é picado por uma aranha geneticamente turbinada e ganha força, resistência, premonição e agilidade sobre-humanas. O que deve fazer com isso?
Ele poderia facilmente conquistar a moça amada e pagar as contas do fim do mês brincando de luta livre. Em contraponto, o caminho do super-herói é austero: para evitar vinganças contra seus próximos, ele deve esconder sua identidade e renunciar a paixões e amores. Por que escolher essa vida solitária?
Uma resposta vem do tio de Peter: com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Há uma idéia crucial no "american way": o dever do "self-fulfillment", erroneamente traduzido, às vezes, como auto-satisfação. Ora, "fulfill" não designa a gratificação, mas o cumprimento, no sentido em que são cumpridas profecias e obrigações. O dever de "self-fulfillment" é a tarefa de auto-realizar-se, a obrigação de fazer o máximo de que somos capazes. O sumo pecado é o desperdício de capacidades.
Cuidado: Peter adquire seus poderes por acaso. Ele tem o dever de ser plenamente o que os acidentes da vida fizeram dele. A regra lembrada pelo filme não é: "Seja você mesmo", em que o "você" seria uma entidade profunda (mote de família ou patrimônio genético) à qual deveríamos fidelidade. A regra diz, ao contrário: "Realize-se segundo os acidentes que definem sua vida".
É possível entender muitos dilemas políticos americanos, à condição de levar em conta a força cultural dessa obrigação. Por exemplo, as hesitações dos programas assistenciais nos EUA provêm não de uma falta de generosidade, mas desta dúvida: será que, ajudando-os, não vamos impedi-los de dar o máximo de si?
Outro exemplo são as hesitações entre intervir e não intervir no mundo (Somália e Bósnia, sim, mas demorou. Ruanda, não, mas a culpa ainda dura. E o Oriente Médio?). A prudência estratégica entra em conflito com a regra da auto-realização. O fato de os EUA serem, hoje, a única superpotência produz a obrigação de intervir, exatamente como os poderes adquiridos obrigam Peter a tornar-se o Homem-Aranha. E, às vezes, esse imperativo moral é mais importante do que os próprios interesses econômicos e políticos.
Há mais. Peter, ao descobrir seus novos poderes, tenta ganhar um dinheiro numa luta. O organizador, que se recusa a pagar-lhe o devido, é vítima de um assalto. Peter deixa o assaltante fugir: por que socorrer um safado? Acontece que o criminoso que ele deixa escapar cometerá um ato que tocará Peter dolorosamente. Ou seja, pegue o criminoso -não porque ele é ruim, mas porque amanhã pode ser sua vez. É a versão ética de Adam Smith: não precisa evocar grandes princípios, basta pensar em si mesmo, pois o bem da comunidade coincide com os interesses de seus membros.
Em suma, os filósofos encontrarão no "Homem-Aranha" um resumo pop de Alan Gewirth ("Self-Fulfillment") e de John Rawls ("Teoria da Justiça").
Para o público dos EUA, o filme lembra e celebra traços do "american way", que, numa hora grave e densa de interrogações, ajudam a redescobrir a vocação nacional americana. Para que mais pode servir a cultura popular?
Muitos comentam que isso era previsível: no 11 de setembro, fez falta um super-herói que parasse os aviões, salvasse os passageiros e desse umas boas chapoletadas nos terroristas. O Homem-Aranha, sendo nova-iorquino, seria perfeito.
É possível que o sucesso do lançamento americano tenha a ver com o ataque do 11 de setembro. Mas o filme não é apenas um sonho infantil, em que aparece o objeto de nossos anseios do tipo: "Quer um super-herói? Lá vai ele".
Certo, é impossível viver nos EUA, hoje, sem levantar os olhos, com apreensão, quando um avião voa baixo. No entanto o desejo de ver super-heróis patrulhando o céu e, quem sabe, participando da guerra é menos importante do que a pergunta aberta pelo novo conflito: "Além da vingança, qual é nossa razão para lutar?". Um ataque e uma guerra só podem criar a necessidade de redefinir o sentido da comunidade nacional.
O Super-Homem dizia que ele lutava pela justiça, pela liberdade e pelo "american way". Mas o que é, hoje, o "american way"? Ironicamente, alguém sugerirá: é a bolha da Bolsa de Valores dos anos 90? É a gestão da Enron? A prudência de Greenspan? O yuppismo dos anos 80? A contracultura dos 60? A raiva de Timothy McVeigh?
Provavelmente, o futuro do dito império americano depende da capacidade de o país descobrir mais uma vez sua razão de ser. É uma missão não para os marines, mas para a cultura popular. "Homem-Aranha", embora tenha sido realizado antes do 11 de setembro, responde a esse chamado.
Como quase todos os super-heróis, Peter Parker, um adolescente da pequena classe média, tímido e estudioso, é órfão. Lembrete: o sujeito americano é aquele que, para fazer a América, sepulta seus antepassados e decide afirmar-se por seus esforços próprios.
Por acidente, Peter é picado por uma aranha geneticamente turbinada e ganha força, resistência, premonição e agilidade sobre-humanas. O que deve fazer com isso?
Ele poderia facilmente conquistar a moça amada e pagar as contas do fim do mês brincando de luta livre. Em contraponto, o caminho do super-herói é austero: para evitar vinganças contra seus próximos, ele deve esconder sua identidade e renunciar a paixões e amores. Por que escolher essa vida solitária?
Uma resposta vem do tio de Peter: com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Há uma idéia crucial no "american way": o dever do "self-fulfillment", erroneamente traduzido, às vezes, como auto-satisfação. Ora, "fulfill" não designa a gratificação, mas o cumprimento, no sentido em que são cumpridas profecias e obrigações. O dever de "self-fulfillment" é a tarefa de auto-realizar-se, a obrigação de fazer o máximo de que somos capazes. O sumo pecado é o desperdício de capacidades.
Cuidado: Peter adquire seus poderes por acaso. Ele tem o dever de ser plenamente o que os acidentes da vida fizeram dele. A regra lembrada pelo filme não é: "Seja você mesmo", em que o "você" seria uma entidade profunda (mote de família ou patrimônio genético) à qual deveríamos fidelidade. A regra diz, ao contrário: "Realize-se segundo os acidentes que definem sua vida".
É possível entender muitos dilemas políticos americanos, à condição de levar em conta a força cultural dessa obrigação. Por exemplo, as hesitações dos programas assistenciais nos EUA provêm não de uma falta de generosidade, mas desta dúvida: será que, ajudando-os, não vamos impedi-los de dar o máximo de si?
Outro exemplo são as hesitações entre intervir e não intervir no mundo (Somália e Bósnia, sim, mas demorou. Ruanda, não, mas a culpa ainda dura. E o Oriente Médio?). A prudência estratégica entra em conflito com a regra da auto-realização. O fato de os EUA serem, hoje, a única superpotência produz a obrigação de intervir, exatamente como os poderes adquiridos obrigam Peter a tornar-se o Homem-Aranha. E, às vezes, esse imperativo moral é mais importante do que os próprios interesses econômicos e políticos.
Há mais. Peter, ao descobrir seus novos poderes, tenta ganhar um dinheiro numa luta. O organizador, que se recusa a pagar-lhe o devido, é vítima de um assalto. Peter deixa o assaltante fugir: por que socorrer um safado? Acontece que o criminoso que ele deixa escapar cometerá um ato que tocará Peter dolorosamente. Ou seja, pegue o criminoso -não porque ele é ruim, mas porque amanhã pode ser sua vez. É a versão ética de Adam Smith: não precisa evocar grandes princípios, basta pensar em si mesmo, pois o bem da comunidade coincide com os interesses de seus membros.
Em suma, os filósofos encontrarão no "Homem-Aranha" um resumo pop de Alan Gewirth ("Self-Fulfillment") e de John Rawls ("Teoria da Justiça").
Para o público dos EUA, o filme lembra e celebra traços do "american way", que, numa hora grave e densa de interrogações, ajudam a redescobrir a vocação nacional americana. Para que mais pode servir a cultura popular?
quinta-feira, 9 de maio de 2002
Quem vota em Jean-Marie le Pen?
Alguns meses atrás, num apartamento de Nova York, esbarrei numa coleção de suvenires. Entre a ponta de uma lança dos massais do Quênia e uma marionete tailandesa, havia uma estatueta de cerâmica representando "o" francês. Era um homem de boina azul, bigode, macacão e baguete em baixo do braço. O homenzinho de cerâmica reapareceu na semana passada. Eis como.
Quase um francês em cada cinco votou em Jean-Marie le Pen para presidente: um candidato declaradamente xenófobo, racista e neofascista. Nenhuma novidade: a força de seu eleitorado já era 15% há anos. Desta vez, pela dispersão das esquerdas e pela mediocridade das escolhas possíveis, Le Pen cresceu um pouco e chegou ao segundo turno.
De repente, a imprensa mundial perguntou: quem vota nessa figura? Os repórteres saíram à caça de bruxas e voltaram perplexos. Certo, existem, no eleitorado de Le Pen, neonazistas extravagantes, mas a grande maioria dos que votaram nele têm um rosto banal como o nosso. (A conclusão foi igual para os eleitores de candidatos neofascistas em outros países europeus: Áustria, Bélgica, Dinamarca etc.).
Numa manifestação, em Paris, a repórter da CNN procurava descobrir a cara do racismo, da vontade de sair da Europa unida, de "limpar" etnicamente o país, de deportar os estrangeiros.
Perguntava: "Por que você sustenta Le Pen?". Resposta: "Porque sou francês". No meio duma dessas entrevistas, na tela da TV, apareceram várias cópias do homenzinho de cerâmica: um grupo de manifestantes desfilava de macacão, boina e baguete para declarar sua "francesice". Afinal, disfarçar-se de si mesmo é um bom jeito de defender uma identidade ameaçada. E uma das razões do voto de quem desfilou para Le Pen é o medo de perder-se, de não ser mais si mesmo, o risco de não ser mais nada.
Não é um medo incomum. Há um sentimento tipicamente moderno que ultrapassa em muito os limites do eleitorado dos vários Le Pen do mundo. Ele joga pontes insuspeitadas entre sujeitos que parecem distantes, política e socialmente, reunindo:
1) os racistas e os patriotas,
2) os insatisfeitos com a algaravia nas ruas de seus bairros, com os odores de estranhos cozidos nas escadas do prédio ou com a música alta no andar de cima,
3) os trabalhadores cujos empregos são ameaçados por imigrantes ou pela fuga das empresas em busca de mão-de-obra barata,
4) os pequenos comerciantes arruinados pelos shoppings onde triunfam as franquias internacionais,
5) os que entregam suas casas às instituições financeiras que lhes emprestaram dinheiro,
6) os pequenos agricultores esmagados pelo latifúndio da indústria alimentar internacional,
7) os excluídos da tecnologia eletrônica e digital,
8) em geral, todas as vítimas e os inimigos de um mundo em que as comunicações são imediatas, as viagens são rápidas e as migrações (assim como as misturas), frequentes e, aparentemente, fáceis.
Quem vota em Le Pen não é propriamente de direita, pois abomina o capital internacional e financeiro. E muitos dos que militam na esquerda vivem, de fato, as mesmas indignações que o lepenistas.
O denominador comum é uma espécie de nostalgia de casa à qual todos somos sensíveis: a nostalgia de um tempo em que o mundo talvez fosse menor, mais estável, mais seguro, mais igual a si mesmo.
Vivo entre dois países, se não três: quem me lê, mesmo que não se desloque, participa das viagens. A presença dessa diversidade nas nossas vidas é um traço banal da modernidade. É graças a ela que nos reconhecemos cada vez mais como membros da espécie humana, e não só de uma tribo. Mas há um custo: numa tribo, seria muito mais fácil saber quem somos e para que viemos ao mundo.
Como os homenzinhos de cerâmica que desfilaram com Le Pen, eu também sinto falta dum vilarejo onde todos falem a mesma língua e todos saibam a função de cada um na comunidade, mesmo que seja a do louco ou a do vadio. Se todos soubessem para que sirvo, eu mesmo saberia-o com certeza. Seria um grande alívio.
A globalização expande nossa tribo até incluir a humanidade inteira (o que nos parece simpático e desejável), mas, ao mesmo tempo, ela permite a livre circulação pelo mundo de interesses descomprometidos com o destino concreto das comunidades e das pessoas (o que é devastador).
De forma análoga, a resistência à globalização expressa a vontade de não abdicar a direção de nossas vidas concretas (o que é desejável), mas expressa também a nostalgia de uma casa tranquila e perdida (o que é inevitável) e, nessa nostalgia, o ódio do estrangeiro que atrapalhou a paz do vilarejo (o que é assustador e compromete o que há de melhor na globalização).
Os homens de cerâmica que votam em Le Pen lembram que, no coração de nossa nostalgia, está o risco de um tribalismo alimentado por caricaturas de nós mesmos.
Resta falar da estatueta de cerâmica no apartamento de Nova York. Pois a tal nostalgia de casa é também a força atrás da estética kitsch que nos é proposta, hoje, como imagem do conforto no qual seria bom viver. Mas isso fica para outra vez.
Quase um francês em cada cinco votou em Jean-Marie le Pen para presidente: um candidato declaradamente xenófobo, racista e neofascista. Nenhuma novidade: a força de seu eleitorado já era 15% há anos. Desta vez, pela dispersão das esquerdas e pela mediocridade das escolhas possíveis, Le Pen cresceu um pouco e chegou ao segundo turno.
De repente, a imprensa mundial perguntou: quem vota nessa figura? Os repórteres saíram à caça de bruxas e voltaram perplexos. Certo, existem, no eleitorado de Le Pen, neonazistas extravagantes, mas a grande maioria dos que votaram nele têm um rosto banal como o nosso. (A conclusão foi igual para os eleitores de candidatos neofascistas em outros países europeus: Áustria, Bélgica, Dinamarca etc.).
Numa manifestação, em Paris, a repórter da CNN procurava descobrir a cara do racismo, da vontade de sair da Europa unida, de "limpar" etnicamente o país, de deportar os estrangeiros.
Perguntava: "Por que você sustenta Le Pen?". Resposta: "Porque sou francês". No meio duma dessas entrevistas, na tela da TV, apareceram várias cópias do homenzinho de cerâmica: um grupo de manifestantes desfilava de macacão, boina e baguete para declarar sua "francesice". Afinal, disfarçar-se de si mesmo é um bom jeito de defender uma identidade ameaçada. E uma das razões do voto de quem desfilou para Le Pen é o medo de perder-se, de não ser mais si mesmo, o risco de não ser mais nada.
Não é um medo incomum. Há um sentimento tipicamente moderno que ultrapassa em muito os limites do eleitorado dos vários Le Pen do mundo. Ele joga pontes insuspeitadas entre sujeitos que parecem distantes, política e socialmente, reunindo:
1) os racistas e os patriotas,
2) os insatisfeitos com a algaravia nas ruas de seus bairros, com os odores de estranhos cozidos nas escadas do prédio ou com a música alta no andar de cima,
3) os trabalhadores cujos empregos são ameaçados por imigrantes ou pela fuga das empresas em busca de mão-de-obra barata,
4) os pequenos comerciantes arruinados pelos shoppings onde triunfam as franquias internacionais,
5) os que entregam suas casas às instituições financeiras que lhes emprestaram dinheiro,
6) os pequenos agricultores esmagados pelo latifúndio da indústria alimentar internacional,
7) os excluídos da tecnologia eletrônica e digital,
8) em geral, todas as vítimas e os inimigos de um mundo em que as comunicações são imediatas, as viagens são rápidas e as migrações (assim como as misturas), frequentes e, aparentemente, fáceis.
Quem vota em Le Pen não é propriamente de direita, pois abomina o capital internacional e financeiro. E muitos dos que militam na esquerda vivem, de fato, as mesmas indignações que o lepenistas.
O denominador comum é uma espécie de nostalgia de casa à qual todos somos sensíveis: a nostalgia de um tempo em que o mundo talvez fosse menor, mais estável, mais seguro, mais igual a si mesmo.
Vivo entre dois países, se não três: quem me lê, mesmo que não se desloque, participa das viagens. A presença dessa diversidade nas nossas vidas é um traço banal da modernidade. É graças a ela que nos reconhecemos cada vez mais como membros da espécie humana, e não só de uma tribo. Mas há um custo: numa tribo, seria muito mais fácil saber quem somos e para que viemos ao mundo.
Como os homenzinhos de cerâmica que desfilaram com Le Pen, eu também sinto falta dum vilarejo onde todos falem a mesma língua e todos saibam a função de cada um na comunidade, mesmo que seja a do louco ou a do vadio. Se todos soubessem para que sirvo, eu mesmo saberia-o com certeza. Seria um grande alívio.
A globalização expande nossa tribo até incluir a humanidade inteira (o que nos parece simpático e desejável), mas, ao mesmo tempo, ela permite a livre circulação pelo mundo de interesses descomprometidos com o destino concreto das comunidades e das pessoas (o que é devastador).
De forma análoga, a resistência à globalização expressa a vontade de não abdicar a direção de nossas vidas concretas (o que é desejável), mas expressa também a nostalgia de uma casa tranquila e perdida (o que é inevitável) e, nessa nostalgia, o ódio do estrangeiro que atrapalhou a paz do vilarejo (o que é assustador e compromete o que há de melhor na globalização).
Os homens de cerâmica que votam em Le Pen lembram que, no coração de nossa nostalgia, está o risco de um tribalismo alimentado por caricaturas de nós mesmos.
Resta falar da estatueta de cerâmica no apartamento de Nova York. Pois a tal nostalgia de casa é também a força atrás da estética kitsch que nos é proposta, hoje, como imagem do conforto no qual seria bom viver. Mas isso fica para outra vez.
quinta-feira, 2 de maio de 2002
Pornografia virtual e moralismos perigosos
Nestas semanas, em que se fala tanto em pedofilia, a Suprema Corte dos Estados Unidos pronunciou-se em matéria de pornografia infantil.
Eis um resumo do caso. Há décadas, a lei federal americana proíbe a produção, a distribuição e a posse de pornografia infantil, definida como "a apresentação visual de menores engajados em atos sexuais". A existência dessas imagens comprova que houve abuso sexual dos jovens atores: proibi-las é uma maneira de proteger os menores.
Em 1996, uma nova lei estendeu a definição de pornografia infantil para incluir qualquer imagem "criada, adaptada ou modificada de tal forma que alguém, identificado como menor, pareça ser engajado num ato sexual". Desde então, os atores de um filme pornô podem ser maiores de idade, mas, se um comentário durante o filme sugere que eles têm 15 anos, eles são "identificados como menores" e a obra torna-se pornografia infantil.
Imagine que um sujeito receba por e-mail um convite para acessar um site de "adolescentes lascivas". Ele clica e transfere uma imagem para seu disco rígido. Seja qual for a idade efetiva dos atores, segundo a lei de 1996, o sujeito poderá ser preso por uso de pornografia infantil, pois a propaganda inicial identificava as atrizes como "adolescentes".
Além disso, o texto de 1996, colocando o acento sobre "parecer" (e não "ser") menor, decretava a equivalência perante a lei de obras filmadas com atores reais e obras produzidas por tecnologia digital, sem ator nenhum. Quem viu o filme "Final Fantasy" sabe que, logo, será possível gerar imagens digitais de qualidade igual à das imagens filmadas. Num dia próximo, serão produzidos filmes pornográficos sem atores -espécie de desenhos animados imitando perfeitamente a realidade. Não haverá como saber se um DVD de pornografia infantil é a reprodução de uma cena real ou é fruto de escrituras eletrônicas. Para a lei de 1996, a pornografia infantil digital (portanto sem atores) é tão culpada quanto a antiga. À primeira vista, por que não? Qual a relevância, uma vez que reprovamos ambas?
Ora, a Free Speech Coalition (coalizão para a liberdade de expressão, uma associação de produtores de material erótico) recorreu à Justiça contra a lei de 1996, alegando que essa nova definição da pornografia infantil impunha uma restrição à liberdade de expressão, garantida pela Constituição americana. Incriminando representações visuais cuja produção não envolve (e, portanto, não corrompe) crianças reais, a lei não estaria reprimindo crimes efetivos contra os menores, mas perseguindo gostos ou desejos.
No dia 16 último, a Suprema Corte decidiu a favor da Free Speech Coalition, por seis votos contra três. No relatório da decisão, o juiz Anthony Kennedy chegou a notar que a lei de 1996 era suficientemente vaga para justificar que alguém quisesse proibir "Romeu e Julieta" (que eram dois adolescentes). Sem medo de tomar uma atitude que hoje é pouco popular, a Suprema Corte lembrou que a pornografia infantil é proibida com o propósito de proteger o menor contra abusos efetivos. Mas a lei não se propõe a controlar e perseguir sujeitos que teriam fantasias pedofílicas. A lei pode reprimir atos, não idéias ou imagens.
A leitura das petições e da decisão da Suprema Corte me surpreendeu. Revelou-me a facilidade com a qual podemos aceitar a perda de distinções que são cruciais para nossas liberdades -como a distinção entre a (legítima, necessária) repressão dos atos e a (problemática) perseguição de fantasias e imagens.
Sofremos de um perigoso moralismo reativo: quando uma série de fatos de crônica nos indignam, logo sonhamos com leis que regrem não só os atos, mas também os desejos e as intenções. E com uma Justiça que se encarregue de punir, com o mesmo zelo, tanto os crimes de fato quanto os pecados da alma.
Os pornógrafos estão entre as vítimas ideais desses sobressaltos morais. A censura ataca aqueles que todos gostaríamos de silenciar. No caso, quem estará a fim de defender a imagem um pouco sinistra do pedófilo que produz, distribui ou procura pornografia infantil na internet? E é fácil condescender à idéia de que essa procura pode alimentar, mais cedo, mais tarde, uma atividade predatória. Então por que não prevenir o crime policiando as fantasias e os desejos malsãos?
Pois é. Está anunciada para agosto (junho nos EUA) a estréia brasileira do novo filme de Steven Spielberg, "Minority Report - A Nova Lei", com Tom Cruise. É a adaptação de um conto de Phillip K. Dick, que nos leva para um mundo em que a biotecnologia permite antever os atos. Portanto é possível acusar e prender as pessoas por crimes que cometeriam amanhã. De uma certa forma, é o que aconteceria se a lei policiasse as intenções e os desejos, sob o pretexto de que eles podem levar aos atos.
O mundo que Spielberg trará para a tela -assim como o mundo que fosse regido pela lei de 1996- não precisa, para existir, ser a obra de nenhum censor maluco. Bastamos nós.
Eis um resumo do caso. Há décadas, a lei federal americana proíbe a produção, a distribuição e a posse de pornografia infantil, definida como "a apresentação visual de menores engajados em atos sexuais". A existência dessas imagens comprova que houve abuso sexual dos jovens atores: proibi-las é uma maneira de proteger os menores.
Em 1996, uma nova lei estendeu a definição de pornografia infantil para incluir qualquer imagem "criada, adaptada ou modificada de tal forma que alguém, identificado como menor, pareça ser engajado num ato sexual". Desde então, os atores de um filme pornô podem ser maiores de idade, mas, se um comentário durante o filme sugere que eles têm 15 anos, eles são "identificados como menores" e a obra torna-se pornografia infantil.
Imagine que um sujeito receba por e-mail um convite para acessar um site de "adolescentes lascivas". Ele clica e transfere uma imagem para seu disco rígido. Seja qual for a idade efetiva dos atores, segundo a lei de 1996, o sujeito poderá ser preso por uso de pornografia infantil, pois a propaganda inicial identificava as atrizes como "adolescentes".
Além disso, o texto de 1996, colocando o acento sobre "parecer" (e não "ser") menor, decretava a equivalência perante a lei de obras filmadas com atores reais e obras produzidas por tecnologia digital, sem ator nenhum. Quem viu o filme "Final Fantasy" sabe que, logo, será possível gerar imagens digitais de qualidade igual à das imagens filmadas. Num dia próximo, serão produzidos filmes pornográficos sem atores -espécie de desenhos animados imitando perfeitamente a realidade. Não haverá como saber se um DVD de pornografia infantil é a reprodução de uma cena real ou é fruto de escrituras eletrônicas. Para a lei de 1996, a pornografia infantil digital (portanto sem atores) é tão culpada quanto a antiga. À primeira vista, por que não? Qual a relevância, uma vez que reprovamos ambas?
Ora, a Free Speech Coalition (coalizão para a liberdade de expressão, uma associação de produtores de material erótico) recorreu à Justiça contra a lei de 1996, alegando que essa nova definição da pornografia infantil impunha uma restrição à liberdade de expressão, garantida pela Constituição americana. Incriminando representações visuais cuja produção não envolve (e, portanto, não corrompe) crianças reais, a lei não estaria reprimindo crimes efetivos contra os menores, mas perseguindo gostos ou desejos.
No dia 16 último, a Suprema Corte decidiu a favor da Free Speech Coalition, por seis votos contra três. No relatório da decisão, o juiz Anthony Kennedy chegou a notar que a lei de 1996 era suficientemente vaga para justificar que alguém quisesse proibir "Romeu e Julieta" (que eram dois adolescentes). Sem medo de tomar uma atitude que hoje é pouco popular, a Suprema Corte lembrou que a pornografia infantil é proibida com o propósito de proteger o menor contra abusos efetivos. Mas a lei não se propõe a controlar e perseguir sujeitos que teriam fantasias pedofílicas. A lei pode reprimir atos, não idéias ou imagens.
A leitura das petições e da decisão da Suprema Corte me surpreendeu. Revelou-me a facilidade com a qual podemos aceitar a perda de distinções que são cruciais para nossas liberdades -como a distinção entre a (legítima, necessária) repressão dos atos e a (problemática) perseguição de fantasias e imagens.
Sofremos de um perigoso moralismo reativo: quando uma série de fatos de crônica nos indignam, logo sonhamos com leis que regrem não só os atos, mas também os desejos e as intenções. E com uma Justiça que se encarregue de punir, com o mesmo zelo, tanto os crimes de fato quanto os pecados da alma.
Os pornógrafos estão entre as vítimas ideais desses sobressaltos morais. A censura ataca aqueles que todos gostaríamos de silenciar. No caso, quem estará a fim de defender a imagem um pouco sinistra do pedófilo que produz, distribui ou procura pornografia infantil na internet? E é fácil condescender à idéia de que essa procura pode alimentar, mais cedo, mais tarde, uma atividade predatória. Então por que não prevenir o crime policiando as fantasias e os desejos malsãos?
Pois é. Está anunciada para agosto (junho nos EUA) a estréia brasileira do novo filme de Steven Spielberg, "Minority Report - A Nova Lei", com Tom Cruise. É a adaptação de um conto de Phillip K. Dick, que nos leva para um mundo em que a biotecnologia permite antever os atos. Portanto é possível acusar e prender as pessoas por crimes que cometeriam amanhã. De uma certa forma, é o que aconteceria se a lei policiasse as intenções e os desejos, sob o pretexto de que eles podem levar aos atos.
O mundo que Spielberg trará para a tela -assim como o mundo que fosse regido pela lei de 1996- não precisa, para existir, ser a obra de nenhum censor maluco. Bastamos nós.
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