Meu primeiro encontro com o mal de Alzheimer aconteceu 30 anos atrás, durante uma manhã de caça, nas planícies da Lombardia. Eu e L., um amigo do meu pai, avançávamos, separados por um campo de milho. Um faisão disparou do lado de meu companheiro de caça. Ninguém atirou. Até meu cachorro ficou perplexo. Logo, L. emergiu do milho, carregando sua espingarda de braços esticados, como se fosse um objeto esquisito. Murmurou: "Não sei onde está o gatilho". A arma era uma Browning "Gatilho de Ouro", fosca e escura como fuligem, com um espalhafatoso gatilho dourado.
Algo me apavorou: não o risco de levar algum tiro involuntário, mas o rosto de L., alterado numa expressão de desamparo e horror como nunca eu tinha visto até então.
Pouco tempo atrás, aconselhei uma família que queria lidar melhor com um avô vítima de Alzheimer. Tentei torná-los sensíveis a esta dimensão dos transtornos da memória: no esquecimento, não há nenhuma beatitude. Imagine que cada encontro com as coisas e as pessoas de seu dia-a-dia seja uma primeira vez, uma situação inédita. Acrescente uma dúvida: as pessoas, os objetos, as situações são novos para você, mas paira no ar a suspeita de que não seja bem assim -os outros, por exemplo, parecem esperar que você os reconheça.
É o avesso da infância, em que as novidades são domesticadas para construir um mundo que será familiar. Na demência, esse mundo é progressivamente desfeito. O horror final é a perda da sensação de nossa continuidade: normalmente, apesar da variedade de nossos atos e de nossas emoções, acreditamos que somos sempre a mesma pessoa. Ora, um sujeito, no meio da noite, parado diante da geladeira, pergunta-se por que veio até ali; ele não se reconhece mais, aquele que acordou não é o mesmo que chegou à cozinha. A depressão acompanha quase sempre a perda de memória: o sujeito faz o luto de si mesmo.
Em New Canaan, Connecticut, abriu as portas The Village, um novo centro de vida assistida para pessoas com transtornos de memória (Alzheimer e outras demências). O centro foi objeto de reportagens, fiquei curioso e quis visitá-lo. Lee Waskow, diretora do centro, e Pam Richardson, relações-públicas, possibilitaram gentilmente minha visita. The Village será um lugar de referência para quem deva planejar a vida assistida de pessoas que sofrem de demência e de perda de memória.
A instituição pratica e testa todo tipo de terapia ocupacional, mas sua prerrogativa principal é outra. A visita a The Village é uma aula de psicologia ambiental. O espaço foi concebido para ter virtudes terapêuticas ou, no mínimo, apaziguadoras. A iluminação é vertical e difusa, sem sombras -pois as sombras induzem alucinações em quem não conta com a memória para melhor perceber a realidade. Pela mesma razão, as cortinas são evitadas, sobretudo as de plástico, que produzem reflexos misteriosos. As camas são orientadas de maneira a oferecer uma visão direta do banheiro, pois quem acorda de noite pode ter esquecido a topografia do quarto. Os corredores são curvos e, quando possível, circulares, para permitir a deambulação (compulsiva para muitos dos que estão nessa condição) sem impor a repetição do vai-e-vem numa jaula
Enfim, o lugar principal de The Village é Main Street, uma rua (coberta) que reproduz o centro de uma cidadezinha americana dos anos 50. Quem viajou a Orlando conhece esse lugar: é um trecho da Main Street da Disneylândia.
Talvez esse espaço facilite lembranças do passado remoto e assim protele o processo degenerativo. Na verdade, nem todos os hóspedes de The Village viveram nesse tipo de cidadezinha de 40 ou 50 anos atrás. Pouco importa, pois, para quem perde a memória e, portanto, se perde, pode haver um benefício no fato de habitar um lugar que, no imaginário coletivo, é o protótipo do aconchego de casa.
Aqui, em The Village, ou na Disneylândia, a rua da pequena cidade americana dos anos 50 vale como símbolo de um lar possível e sonhado.
The Village responde ao horror da perda de memória e da demência com uma espécie de ato de fé que diz: deve existir uma morada à qual pertenceríamos de verdade.
No fim de tarde, quando os hóspedes estão em seus aposentos, a rua, vazia, é tocante: um monumento discreto à ilusão e à esperança de termos uma casa ou uma comunidade que sejam nossas.
Voltarei a tratar desse sonho de nossa cultura. Entretanto mais duas notas sobre o mal de Alzheimer:
1) Acaba de sair "Losing My Mind" (perdendo a cabeça), de Thomas De Baggio. Aos 57 anos, o autor recebeu o (raro) diagnóstico de Alzheimer precoce. Decidiu registrar por escrito sua "morte em câmera lenta" até a última entrada, quando "as palavras somem antes de chegar à página". O livro é um extraordinário elogio (fúnebre) da memória -ou seja, das lembranças sem as quais não somos nada.
2) Segundo a Alzheimer's Association americana, 10% da população acima de 65 anos sofre de mal de Alzheimer. Aos 85 anos, a percentagem é de 50%.
quinta-feira, 28 de março de 2002
quinta-feira, 21 de março de 2002
A Arte Cretina e o Genocídio
Domingo passado, no Jewish Museum (o museu judaico) de Nova York, estreou a exposição "Mirroring Evil" ("Espelhando o Mal"), subtítulo: "Imagens do Nazismo - Arte Recente".
A polêmica ao redor dessa exposição ocupa a imprensa americana há semanas. Muitos julgam que as obras expostas profanam a memória do Genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Outros acham que, para a arte, nada pode ser sagrado.
Às 9h de domingo, na frente do museu, uma centena de manifestantes erguiam cartazes: "Vergonha", "Isso não é arte, é profanação e desconsagração". Eram, em grande parte, descendentes de vítimas do genocídio. Um senhor idoso pegou a minha mão e pediu: "Por favor, não entre". Comovido, senti a necessidade de justificar-me e disse-lhe que tinha vindo para escrever uma coluna. E aqui vai.
A exposição apresenta o trabalho de 13 jovens artistas. Segundo Norman Kleeblatt, o curador, eles são representativos de um novo olhar sobre o nazismo e o genocídio. Houve a época que culminou com "Os Deuses Malditos", de Visconti (69), e "Porteiro da Noite", de Liliana Cavani (74). Essa geração serviu-se do nazismo para explorar cantos escuros de sua sexualidade. Para ela, o nazismo transformou-se numa fantasia, seus símbolos viraram brinquedos eróticos -suásticas e quepes SS apareceram nos clubes sadomasoquistas do mundo inteiro. Hoje, segundo Kleeblatt, aparecem artistas que evocam o genocídio e o nazismo de uma maneira diferente: nada de erotismo tétrico, mas uma irreverência que ele preza.
Ora, à vista da exposição, não é necessário entrar na polêmica entre liberdade artística e memória do genocídio. Pois há uma outra razão pela qual o conselho do museu deveria demitir-se em bloco. É que eles produziram uma exposição em que a maioria das obras são cretinas.
Ao percorrer as salas, é difícil evitar a impressão de que a arte conceitual esteja servindo de refúgio para artistas desprovidos de competências técnicas e atravessados por pensamentos que conseguem ser, ao mesmo tempo, confusos e óbvios. Para proteger o trabalho dos artistas conceituais que resistem a esse desastre, proponho que reservemos o termo "arte conceitual" para as obras em que arte e conceito se manifestam. Para as outras, prefiro o termo "arte cretina".
A exposição de Nova York começa com uma instalação de arte conceitual -no sentido restrito e positivo. Piotr Uklanski reúne 123 retratos de atores que personificam nazistas, de Gregory Peck a Yul Brunner. São fotos de filmagem ou cartazes de cinema. A idéia é simples e forte: a indústria do entretenimento tornou o nazismo glamouroso.
Depois dessa obra conceitual, a arte cretina invade a cena. Num vídeo, Maciej Toporowicz monta imagens publicitárias de Calvin Klein em sequência com corpos glorificados nos filmes da cineasta nazista Leni Riefenstahl. De vez em quando, ele intercala marcas de perfume: Eternity, Obsession. Ao redor de mim, vejo o esforço diligente no rosto de meus companheiros de infortúnio. Tentam entender, pois são intimidados: afinal, o museu diz que isso é arte. Dá vontade de gritar: não é profundo, é só cretino. A montagem é ruim e a idéia é pueril: o erotismo da cueca chique pode ser desprezível, mas não tem nada a ver com o erotismo nazista de Riefenstahl.
Mais adiante, Alan Schechner nos mostra um grupo de presos do campo de Buchenwald que, a partir das linhas verticais dos seus uniformes, se transforma no código de barras de um produto. Ele explica: os detentos eram números, e tudo é reduzido a números pela revolução digital. Profundo, não é?
A palma da arte cretina vai para Tom Sachs, que expõe duas obras. Uma é composta de três cilindros de papelão que seriam contendores de gás e sobre os quais ele escreveu Chanel, Tiffany e Hermès. A outra é uma caixa de Prada, achatada, sobre a qual ele construiu uma medíocre maquete de campo de concentração. Sachs explica que "a moda, como o fascismo, é uma questão de perda de identidade". Ora, é possível achar a moda fútil e detestá-la, mas é cretino confundir a moda, que nos azucrina com a obsessão de sermos diferentes, com o totalitarismo, que impõe uniformidade e uniformes.
Toporowicz, Schechner e Sachs têm pensamentos que seriam simpáticos na boca de moleques de sétima série: somos números, a moda nos torna todos iguais, a publicidade é a morte do desejo e por aí vai. Incapazes de pensar (ou preguiçosos demais para isso), eles partem para a injúria máxima: é tudo nazismo. Com isso, eles armam uma chantagem moral: você não gosta de minha obra? É que 1) você não entende de arte, 2) você quer que o genocídio seja um tema sagrado e 3) você ignora que a arte não respeita tabus, o que demonstra o número 1.
No catálogo da exposição, verborrágico, toda a teoria crítica é convocada para assegurar outra chantagem: quem não gostar, discordará de Adorno, Horkheimer e Foucault.
Bom, não é com essa mediocridade que o genocídio será dessacralizado. Mas a arte conceitual vai ter trabalho para diferenciar-se da arte cretina.
A polêmica ao redor dessa exposição ocupa a imprensa americana há semanas. Muitos julgam que as obras expostas profanam a memória do Genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Outros acham que, para a arte, nada pode ser sagrado.
Às 9h de domingo, na frente do museu, uma centena de manifestantes erguiam cartazes: "Vergonha", "Isso não é arte, é profanação e desconsagração". Eram, em grande parte, descendentes de vítimas do genocídio. Um senhor idoso pegou a minha mão e pediu: "Por favor, não entre". Comovido, senti a necessidade de justificar-me e disse-lhe que tinha vindo para escrever uma coluna. E aqui vai.
A exposição apresenta o trabalho de 13 jovens artistas. Segundo Norman Kleeblatt, o curador, eles são representativos de um novo olhar sobre o nazismo e o genocídio. Houve a época que culminou com "Os Deuses Malditos", de Visconti (69), e "Porteiro da Noite", de Liliana Cavani (74). Essa geração serviu-se do nazismo para explorar cantos escuros de sua sexualidade. Para ela, o nazismo transformou-se numa fantasia, seus símbolos viraram brinquedos eróticos -suásticas e quepes SS apareceram nos clubes sadomasoquistas do mundo inteiro. Hoje, segundo Kleeblatt, aparecem artistas que evocam o genocídio e o nazismo de uma maneira diferente: nada de erotismo tétrico, mas uma irreverência que ele preza.
Ora, à vista da exposição, não é necessário entrar na polêmica entre liberdade artística e memória do genocídio. Pois há uma outra razão pela qual o conselho do museu deveria demitir-se em bloco. É que eles produziram uma exposição em que a maioria das obras são cretinas.
Ao percorrer as salas, é difícil evitar a impressão de que a arte conceitual esteja servindo de refúgio para artistas desprovidos de competências técnicas e atravessados por pensamentos que conseguem ser, ao mesmo tempo, confusos e óbvios. Para proteger o trabalho dos artistas conceituais que resistem a esse desastre, proponho que reservemos o termo "arte conceitual" para as obras em que arte e conceito se manifestam. Para as outras, prefiro o termo "arte cretina".
A exposição de Nova York começa com uma instalação de arte conceitual -no sentido restrito e positivo. Piotr Uklanski reúne 123 retratos de atores que personificam nazistas, de Gregory Peck a Yul Brunner. São fotos de filmagem ou cartazes de cinema. A idéia é simples e forte: a indústria do entretenimento tornou o nazismo glamouroso.
Depois dessa obra conceitual, a arte cretina invade a cena. Num vídeo, Maciej Toporowicz monta imagens publicitárias de Calvin Klein em sequência com corpos glorificados nos filmes da cineasta nazista Leni Riefenstahl. De vez em quando, ele intercala marcas de perfume: Eternity, Obsession. Ao redor de mim, vejo o esforço diligente no rosto de meus companheiros de infortúnio. Tentam entender, pois são intimidados: afinal, o museu diz que isso é arte. Dá vontade de gritar: não é profundo, é só cretino. A montagem é ruim e a idéia é pueril: o erotismo da cueca chique pode ser desprezível, mas não tem nada a ver com o erotismo nazista de Riefenstahl.
Mais adiante, Alan Schechner nos mostra um grupo de presos do campo de Buchenwald que, a partir das linhas verticais dos seus uniformes, se transforma no código de barras de um produto. Ele explica: os detentos eram números, e tudo é reduzido a números pela revolução digital. Profundo, não é?
A palma da arte cretina vai para Tom Sachs, que expõe duas obras. Uma é composta de três cilindros de papelão que seriam contendores de gás e sobre os quais ele escreveu Chanel, Tiffany e Hermès. A outra é uma caixa de Prada, achatada, sobre a qual ele construiu uma medíocre maquete de campo de concentração. Sachs explica que "a moda, como o fascismo, é uma questão de perda de identidade". Ora, é possível achar a moda fútil e detestá-la, mas é cretino confundir a moda, que nos azucrina com a obsessão de sermos diferentes, com o totalitarismo, que impõe uniformidade e uniformes.
Toporowicz, Schechner e Sachs têm pensamentos que seriam simpáticos na boca de moleques de sétima série: somos números, a moda nos torna todos iguais, a publicidade é a morte do desejo e por aí vai. Incapazes de pensar (ou preguiçosos demais para isso), eles partem para a injúria máxima: é tudo nazismo. Com isso, eles armam uma chantagem moral: você não gosta de minha obra? É que 1) você não entende de arte, 2) você quer que o genocídio seja um tema sagrado e 3) você ignora que a arte não respeita tabus, o que demonstra o número 1.
No catálogo da exposição, verborrágico, toda a teoria crítica é convocada para assegurar outra chantagem: quem não gostar, discordará de Adorno, Horkheimer e Foucault.
Bom, não é com essa mediocridade que o genocídio será dessacralizado. Mas a arte conceitual vai ter trabalho para diferenciar-se da arte cretina.
quinta-feira, 7 de março de 2002
A tirania da experiência
Acompanhei as dificuldades de um jovem que, ao terminar sua formação, saiu à procura de um emprego, não encontrou e, enfim, entrou em algumas frias (felizmente não graves).
Buscando trabalho, ele esbarrou em recusas que só os jovens recebem. Os entrevistadores apreciavam seu diploma, gostavam de sua apresentação e perguntavam: "Você tem experiência?". Meu jovem amigo sentia-se num círculo vicioso: era rechaçado por falta de uma experiência que nunca poderia adquirir, pois não conseguia emprego justamente porque lhe faltava experiência.
Parece um pretexto para condenar os jovens a um salário simbólico. Eternos estagiários, eles seriam obrigados a trocar seu trabalho pelo "privilégio" de aprender o ofício.
Mas não é só isso: nossa cultura, em princípio, venera a experiência. Não poderia ser diferente. Salvo em momentos nostálgicos, duvidamos das sabedorias sagradas ou ancestrais. Preferimos confiar e acreditar nas coisas em que podemos colocar o dedo e o nariz. A autoridade, em suma, desertou a tradição e veio para a experiência -o que permitiu, entre outras coisas, o nascimento da ciência moderna: a Terra não é chata porque Ptolomeu disse, é redonda porque a gente pode dar a volta.
Essa mudança cultural alterou as hierarquias sociais, mas não as aboliu -ao contrário-, pois a experiência é cumulativa: há sujeitos que têm mais experiência e que, portanto, gozam de uma autoridade comparável à dos sábios tradicionais. Ou seja, acabaram as hierarquias fundadas nas diferenças de castas, nas inspirações divinas ou nos saberes esotéricos, mas foi promovida uma outra hierarquia, fundada na autoridade conferida pela experiência.
A hierarquia da experiência é perfeitamente adaptada à sociedade moderna. Uma das antigas instituições prospera até hoje: a família. Ora, para manter a hierarquia no núcleo familiar, o critério da experiência é perfeito. Ele justifica, de maneira aparentemente racional, a autoridade dos pais sobre os filhos. Os adultos sabem e podem dizer o que se deve fazer, porque eles viveram mais, já estiveram na mesma situação etc.
Se sou um adolescente, como afirmo minha liberdade? Sou obrigado a me aventurar em terrenos completamente novos. Para me esquivar da autoridade dos pais e dos adultos, tento fazer algo que não esteja no campo de experiência dos que me precedem. A novidade, a originalidade tornam-se verdadeiros valores, porque prometem libertar-me da tirania da experiência dos outros. Se fizesse algo que ninguém nunca fez, quem poderia ditar minha conduta, dizendo-se sábio e experiente?
Para escapar à tirania da experiência dos outros, devo procurar maneiras de viver tão singulares que ninguém (imagino) se sentiria autorizado a invocar sua experiência para dar-me conselhos. Se, a cada dia, me enchesse de mescalina ou de LSD, os pais poderiam discordar radicalmente, proibir, punir, mas não viriam se meter em minhas toxicomanias com o argumento de sua experiência (a não ser que eu seja filho de Timothy Leary).
Também posso escolher o crime. Os pais poderão discordar até o desespero, mas, quando estiver vivendo na prisão, de qual experiência eles poderão prevalecer-se para sugerir condutas?
Recomendação aos pais de adolescentes: se, discutindo com seus filhos, você achar bom evocar a sabedoria que vem de sua experiência, seja humilde e modesto. Quanto mais você justificar sua autoridade pela experiência, tanto mais seu rebento estará a fim de aventurar-se por terrenos pouco ou nada mapeados.
P.S.: Por coincidência, li nestes dias (e recomendo): "This Is the Beat Generation" (Eis a Geração Beat, publicado em 1999, edição de bolso em 2001), de James Campbell. É a história de um grupo de jovens poetas, escritores e vários perdidos que, na América dos anos 40 e 50, inventaram uma rebeldia que consistia em colocar o pé na estrada, tirar a roupa, beber, drogar-se e não saber direito se é para transar com pessoas do mesmo sexo ou do outro. Todos, Kerouac, Burroughs, Ginsberg, parecem frágeis, banais e tristes (além de preocupados em encontrar um editor).
No fim dos anos 50, a geração beat cedeu seu lugar aos "beatniks", inspirados pelos beats e tão fora do mundo quanto o esputinique (sputnik -de onde o nome: beat + nik). Os beatniks dos anos 60 somos nós: os pais cinquentões de hoje, que voltaram de Woodstock e acalmaram-se, entrando nas fileiras.
Os filhos dos beatniks (nossos filhos) estão com um problema. Nós, seus pais, somos muito legais: só queremos fundar nossa autoridade sobre o patrimônio de nossas experiências passadas. Com isso, imaginamos conquistar a simpatia, a admiração e o respeito amigável de nossos filhos.
Assim, conheço um jovem que, surpreendido na hora de acender um baseado no seu quarto, teve direito ao relato detalhado da expedição do pai ao México, 30 anos atrás, para experimentar cogumelos alucinógenos.
O que esse adolescente terá de inventar para que seus atos escapem à autoridade (benévola, mas asfixiante) da pretensa experiência paterna?
Buscando trabalho, ele esbarrou em recusas que só os jovens recebem. Os entrevistadores apreciavam seu diploma, gostavam de sua apresentação e perguntavam: "Você tem experiência?". Meu jovem amigo sentia-se num círculo vicioso: era rechaçado por falta de uma experiência que nunca poderia adquirir, pois não conseguia emprego justamente porque lhe faltava experiência.
Parece um pretexto para condenar os jovens a um salário simbólico. Eternos estagiários, eles seriam obrigados a trocar seu trabalho pelo "privilégio" de aprender o ofício.
Mas não é só isso: nossa cultura, em princípio, venera a experiência. Não poderia ser diferente. Salvo em momentos nostálgicos, duvidamos das sabedorias sagradas ou ancestrais. Preferimos confiar e acreditar nas coisas em que podemos colocar o dedo e o nariz. A autoridade, em suma, desertou a tradição e veio para a experiência -o que permitiu, entre outras coisas, o nascimento da ciência moderna: a Terra não é chata porque Ptolomeu disse, é redonda porque a gente pode dar a volta.
Essa mudança cultural alterou as hierarquias sociais, mas não as aboliu -ao contrário-, pois a experiência é cumulativa: há sujeitos que têm mais experiência e que, portanto, gozam de uma autoridade comparável à dos sábios tradicionais. Ou seja, acabaram as hierarquias fundadas nas diferenças de castas, nas inspirações divinas ou nos saberes esotéricos, mas foi promovida uma outra hierarquia, fundada na autoridade conferida pela experiência.
A hierarquia da experiência é perfeitamente adaptada à sociedade moderna. Uma das antigas instituições prospera até hoje: a família. Ora, para manter a hierarquia no núcleo familiar, o critério da experiência é perfeito. Ele justifica, de maneira aparentemente racional, a autoridade dos pais sobre os filhos. Os adultos sabem e podem dizer o que se deve fazer, porque eles viveram mais, já estiveram na mesma situação etc.
Se sou um adolescente, como afirmo minha liberdade? Sou obrigado a me aventurar em terrenos completamente novos. Para me esquivar da autoridade dos pais e dos adultos, tento fazer algo que não esteja no campo de experiência dos que me precedem. A novidade, a originalidade tornam-se verdadeiros valores, porque prometem libertar-me da tirania da experiência dos outros. Se fizesse algo que ninguém nunca fez, quem poderia ditar minha conduta, dizendo-se sábio e experiente?
Para escapar à tirania da experiência dos outros, devo procurar maneiras de viver tão singulares que ninguém (imagino) se sentiria autorizado a invocar sua experiência para dar-me conselhos. Se, a cada dia, me enchesse de mescalina ou de LSD, os pais poderiam discordar radicalmente, proibir, punir, mas não viriam se meter em minhas toxicomanias com o argumento de sua experiência (a não ser que eu seja filho de Timothy Leary).
Também posso escolher o crime. Os pais poderão discordar até o desespero, mas, quando estiver vivendo na prisão, de qual experiência eles poderão prevalecer-se para sugerir condutas?
Recomendação aos pais de adolescentes: se, discutindo com seus filhos, você achar bom evocar a sabedoria que vem de sua experiência, seja humilde e modesto. Quanto mais você justificar sua autoridade pela experiência, tanto mais seu rebento estará a fim de aventurar-se por terrenos pouco ou nada mapeados.
P.S.: Por coincidência, li nestes dias (e recomendo): "This Is the Beat Generation" (Eis a Geração Beat, publicado em 1999, edição de bolso em 2001), de James Campbell. É a história de um grupo de jovens poetas, escritores e vários perdidos que, na América dos anos 40 e 50, inventaram uma rebeldia que consistia em colocar o pé na estrada, tirar a roupa, beber, drogar-se e não saber direito se é para transar com pessoas do mesmo sexo ou do outro. Todos, Kerouac, Burroughs, Ginsberg, parecem frágeis, banais e tristes (além de preocupados em encontrar um editor).
No fim dos anos 50, a geração beat cedeu seu lugar aos "beatniks", inspirados pelos beats e tão fora do mundo quanto o esputinique (sputnik -de onde o nome: beat + nik). Os beatniks dos anos 60 somos nós: os pais cinquentões de hoje, que voltaram de Woodstock e acalmaram-se, entrando nas fileiras.
Os filhos dos beatniks (nossos filhos) estão com um problema. Nós, seus pais, somos muito legais: só queremos fundar nossa autoridade sobre o patrimônio de nossas experiências passadas. Com isso, imaginamos conquistar a simpatia, a admiração e o respeito amigável de nossos filhos.
Assim, conheço um jovem que, surpreendido na hora de acender um baseado no seu quarto, teve direito ao relato detalhado da expedição do pai ao México, 30 anos atrás, para experimentar cogumelos alucinógenos.
O que esse adolescente terá de inventar para que seus atos escapem à autoridade (benévola, mas asfixiante) da pretensa experiência paterna?
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