Imigrei para o Brasil em 1989, depois de três anos a  viajar como turista. Foi um labirinto administrativo. Mesmo casado com  uma brasileira, no bom direito de estabelecer-me no país, o cenário para  chegar à carteira de residente foi de escola kafkiana. Quando, depois  de seis meses de peregrinações, retirei meu Registro Nacional de  Estrangeiro, na Polícia Federal, um funcionário perguntou: "Mas como  você conseguiu?".
Antes disso, morei na França, durante 15 anos. Lá,  vi amigos de vários horizontes lutarem em vão para conseguir permanecer  no país. Aliás, a burocracia francesa tinha a capacidade de deixar até  um europeu, apesar de seu direito incontestável de residência, com a  impressão de que sua permanência era um favor excepcional.
Por estas  experiências, acho engraçado, quando leio que os Estados Unidos estariam  fechando as fronteiras, que vão -oh horror!- lutar contra uma imigração  clandestina de provavelmente 300 mil pessoas por ano e que, portanto,  eles estariam se tornando "xenófobos".
Os Estados Unidos recebem hoje  mais de 1 milhão de imigrantes legais por ano. Com exceção do Canadá e  da Austrália (que têm uma proporção bem diferente entre território e  população), eles são o único país ocidental aberto. Não está nada certo  que esta política se explique por absconsos interesses econômicos: a  fidelidade dos EUA a sua origem colonial é, antes de mais nada, a  fidelidade a um ideal fundador de refúgio.
As sucessivas e quase  ininterruptas ondas imigratórias certamente produziram várias e  violentas inquietudes internas. Última em data é a de Peter Brimelow,  que publicou recentemente o livro "Alien Nation" e foi entrevistado no  Mais! do último domingo. Brimelow está preocupadíssimo com a  transformação progressiva da sociedade americana, invadida por hordas de  bárbaros hispânicos.
Ele me lembra certos imigrantes italianos na  Suíça (também morei lá: para os imigrantes que não fossem estudantes, a  coisa não era como Kafka, era como Sade; filas de homens separados de  suas famílias por 11 meses, esperando na estação de Brig para exame  médico etc.): quando, finalmente, conseguiam a carteira "C" (residência  permanente), alguns queriam tanto se parecer com suíços que passavam  automaticamente a desprezar os outros italianos (há um filme excelente  com Nino Manfredi sobre isso, chama-se "Pão com Chocolate").
A partir  dos anos 70, a administração americana abandonou um sistema de quotas  preestabelecidas na seleção dos imigrantes. A idéia até lá era permitir  uma imigração que respeitasse e mantivesse a balança das diferentes  etnias e nacionalidades que compunham a nação americana.
Desde então,  a administração decidiu privilegiar os familiares dos imigrados. Esta  nova política de imigração acarretou um aumento significativo das  comunidades asiática e, sobretudo, hispânica. Isso, combinado com o  maior crescimento demográfico destas comunidades, promete a curto prazo  uma alteração substancial da distribuição étnica nos Estados Unidos.
E  daí? Porque estes novos imigrantes não acabariam se integrando no  famoso "melting pot" da cultura americana, como foi o caso dos  irlandeses, e dos italianos? Só porque seriam de cores diferentes?
A  cultura americana tem um fantástico poder de assimilação. Ela incorpora  com rapidez suas diferenças internas mais disruptivas: a guerra no  Vietnã, o assédio sexual, Malcolm X, até o Black Panther Party são agora  filmes, como são filmes e romances, há tempos, a imigração italiana,  irlandesa, polonesa etc. As diferenças tornam-se, no imaginário  cultural, patrimônio comum. Como, aliás, não seria inevitável a  assimilação de todos à nação americana, se para todos a América, para  onde emigram, já é geralmente um sonho muito esperado?
Brimelow  responderia que nisso também as coisas mudaram. A ideologia americana  dominante é hoje multiculturalista. A nação parece perseguir o sonho de  uma comunidade que não peça nenhum sacrifício integrativo, onde cada um  possa permanecer em sua diferença. É verdade que, por bonito que seja,  este sonho arrisca tornar-se pesadelo: o sentimento de uma comunidade de  destino pode mesmo se perder desde que a nação vá dividindo-se em  grupos antagonistas.
O jornalista Michel Lind (autor do recém-lançado  ``A Próxima Nação Americana") acrescentaria que a verdadeira ameaça à  coesão da nação americana não é nem o projeto multiculturalista, nem a  nova balança étnica.
A assimilação das ondas imigratórias até os anos  60 foi facilitada pelo acesso efetivo ao ``american way of life". Como  já parecia evidente nos anos 20 aos sociólogos da escola de Chicago, a  integração econômica, a participação no sonho americano garantiria a  assimilação de todos. Ora, acontece que, justamente desde os anos 60, as  diferenças econômicas foram se aprofundando: o sonho está mais difícil.
Segundo  Lind, a verdadeira fratura que ameaça o tecido social americano é,  hoje, vertical. É isso que ele chama a possível ``brasilização" dos  Estados Unidos: um divórcio irremediável entre uma classe privilegiada e  os outros. Por isso ele acaba pregando também um limite na imigração,  não para manter a balança étnica, mas para conter uma nova e mais aguda  fratura de classe.
Na verdade, se há um risco -relativo, aliás,  especificamente à imigração hispânica-, ele não é nem cultural, nem  propriamente econômico. A cultura americana, já disse, sempre conseguiu  prevalecer sobre as diferenças culturais, e as fraturas econômicas  encontrarão de novo, mais cedo ou mais tarde, o espírito solidário de um  novo pacto social. Mas a nação será sem defesa se prevalecer um  espírito predatório que não faz parte de sua tradição: se seus  imigrantes não vierem para "fazer a América", ou mesmo para "se fazer na  América", mas para explorar a América e levar uma malinha para casa.
Eles  não serão nunca americanos, ou serão americanos de um tipo novo. Aqui,  infelizmente, a idéia de brasilização dos EUA assume uma dimensão  cultural que escapa a Lind: pois eles serão, na ambivalência da palavra e  da tradição colonial portuguesa, "exploradores", e, como tais, sem  nação. Por enquanto, legais ou ilegais, eles ainda são os únicos  imigrantes globalmente mal vindos. É isso que se traduz em oposição ao  uso de outras línguas do que o inglês, ou ao eventual espírito de clã  dos grupos de novos imigrantes: um ressentimento difuso contra quem  persegue o sonho do bem-estar sem entender que este ainda é, nos EUA, um  ideal comunitário e não uma vocação predatória.
NOTA
Nos  debates sobre os efeitos do multiculturalismo, muitos acabam contando os  negros americanos como uma etnia a mais. É um equívoco político: os  negros dos EUA são inexoravelmente americanos, parte integrante da  nação, em nada comparáveis às recentes ondas migratórias.
 
