Passaram os tempos da Harlem Renaissance; de regra e de fato, os brancos não se aventuram mais a procurar festas nas noites do Harlem. Desde os anos 60, é perigoso demais, a violência e a raiva tornaram o estereótipo pouco frequentável, mas não menos erótico.
Os brancos podem se consolar olhando o Harlem e o South Bronx de um ônibus de vidros fechados. São oferecidos até ``tours" regulares (Victor's Sportsworld, 917/855.1544). Prometem visita aos lugares mais famosos do Harlem e ``muito mais"! Uma olhada de perto na vida do South Bronx, emoções escutando música em um clube de jazz, uma noite no famoso Apollo Club... Alguns, apesar da ameaça, dispensam o ônibus.
Na rua 128, há uma casa de tijolos de três andares, uma ``brownstone", como é aqui chamada, resto de tempos melhores. Deserta de dia, ela se anima cada noite. Nela, um mesmo homem gere, organiza e anima, a cada segunda-feira, um bordel e, nas outras noites da semana, uma boate gay reservada a negros e latinos.
Para a boate gay, K., que administra o negócio inteiro, teve que adotar esta solução. A idéia inicial era que a boate fosse aberta a todos. O endereço, no Harlem, deveria bastar para que o lugar fosse privilegiadamente para negros e latinos; os brancos que estivessem a fim, que viessem. Mas não deu: eram muitos, e sobretudo todos atrás da mesma coisa.
Como a regra da casa -comum nos clubes gays de Nova York- era deixar as roupas na entrada, num saco plástico numerado, e circular nu ou de jockstraps, eles caíam ajoelhados em adoração. Mesmo os brancos que pareciam machos para valer, executivos ou motoqueiros, eles só queriam dar. A clientela local acabou se queixando: não tinha espaço para um negro ou latino que quisesse, ele, procurar um macho.
Assim, K. teve que abrir aos brancos só uma noite por mês. Quem quiser escutar sua voz, modulando anúncios diferentes para as diferentes atrações do Afrodeeziak (é o nome que ele deu a sua boate), pode telefonar, em Nova York, ao 212/996.2833.
Notar-se-á a mudança de estilo e tom: as noites interraciais são anunciadas com um forte sotaque negro e prometem uma virilidade negra absoluta, direta, decidida. Seu melhor anúncio destes, dizia: "Aqui temos o sabor para vocês, café preto, sem creme, sem açúcar... Todas as outras noites do mês, para pessoas de cor, são anunciadas como qualquer festa gay, prometendo disc-jóqueis brilhantes e muita animação.
Para confirmar a opinião de K., um outro telefone pode servir. Existe em Nova York um serviço telefônico de encontros gays: 212/550.6666. Seguindo as devidas instruções, pode-se gravar um anúncio que será escutado imediatamente por quem chamar, e pode-se, naturalmente, escutar a lista dos anúncios das últimas horas. Os anúncios são organizados por categoria: negros, latinos e "aqueles que os querem. Nos anúncios de negros, escutar-se-ão anúncios de ``bottoms" (os que preferem estar em baixo) e ``tops" (os que estão em cima) em equilíbrio razoável. Mas os brancos são um desfile de ``bottoms". Faltam ``tops". Os negros ``bottoms", aliás, entenderam e geralmente declaram, preventivamente: "Brothers only.
Pergunto a K. se o bordel heterossexual das segundas é frequentado também por brancos. Como resposta, manda-me um convite (o que não significa que não deva pagar o ingresso -K. tem o senso dos negócios). Presto para minha mulher um juramento de fidelidade que, na verdade, o amor torna desnecessário, e vou. É um bordel pobre, como há tantos no mundo. As mulheres vêm de fora, só pagam US$ 5 a K. para usar os quartos no terceiro andar.
São todas de cor, mulatas, negras, indianas. Os homens todos negros, em uniforme do Harlem. Ninguém, aliás, tira o gorro de lã, nem o anoraque, apesar da calefação. No térreo, está o bar, com a televisão, uma sala de vídeo (pornô) e um quarto para as mulheres se vestirem, ou se despirem; no primeiro, uma vasta sala vazia, talvez para dançar, e outra menor com, ao centro, uma espécie de alta cama ``king size"; no segundo, os quartinhos particulares, onde se sobe, querendo, com uma das mulheres.
Uma música toca sem parar: "We want pussy, work that pussy... (queremos b..., trabalhem esta b...). Sobre a cama do primeiro andar, as mulheres, alternadamente, se despem e torcem, enquanto os homens interessados, de pé ao redor da cama, enfiam notas de US$ 1 por aqui e por ali. K. fornece o troco. De vez em quando, as mulheres sentam a cavalo em um homem um pouco indolente e se agitam em um frenético ``lap-dancing".
No bar, a atmosfera é amigável. Para quem me pergunta, apresento-me como brasileiro novo na cidade, para não parecer branco demais. O clima não é nem tenso, nem tórrido; fala-se das esposas ciumentas, do prazer de uma cerveja entre amigos. A sala de vídeo é deserta. Às vezes, uma mulher desce ao bar, para despertar o desejo de algum rapaz. Os homens assim fogosamente cavalgados e sacudidos parecem sobretudo preocupados em salvar sua cerveja e não perder de vista, na televisão (segunda é dia de futebol), o ``quarterback" dos 49ers.
Começo a me perguntar por que K. me convidou, quando, já tarde, aparece uma figura inesperada. Um homem branco -mais de 50 anos, nenhum esforço para esconder sua origem e status social- desce ao bar. Parece conhecer já alguns dos presentes. Bebe uma cerveja, fala de futebol, fuma. A razão de sua presença se explica poucos minutos depois, quando sobe para o primeiro andar uma mulher completamente diferente das outras.
Loira, olhos azuis, nos 30 anos, um corte de cabelos curto e elegante: a pouca roupa de baixo é de ótima qualidade, assim como os escarpins. Quase não usa maquiagem. Ela se deita na vasta cama e se oferece, ao som da mesma eterna música. "We want pussy, work that pussy. Os homens tocam, enfiam dedos e dólares, as coisas parecem esquentar, mais clientes se agrupam ao redor da cama, eles se fazem tocar, o jogo torna mais pesado. O homem branco está na penumbra, observa. Dois rapazes tiram a nova mulher da cama, dançam com ela, nua, e finalmente a possuem. Volto para a entrada, é a hora combinada para que um amigo passe para me pegar (desconfio da 128 à noite). K. me faz um grande sorriso e diz: "Got it?, entendeu?
Algo entendi, com efeito.
O bastão da lei
Na exposição do Whitney, uma outra obra de Mel Chin apresenta um cassetete da polícia americana, onde a empunhadura, perpendicular ao bastão, toma a forma de um pênis, preto naturalmente. Excrescência no bastão da lei, o negro se transforma em um consolo de sex shop. O símbolo mais banal da ordem social se erotiza: o bastão pode impor uma iníqua repartição social, mas ele se torna, na própria mão do policial, um instrumento erótico que talvez satisfaça a ambos, oprimido e opressor.
As fotografias de Robert Mapplethorpe, na mesma exposição, justamente expressam uma veneração do pênis negro, ou do negro como pênis. Atrapalham a boa consciência dos comentadores, pois falam de uma cumplicidade erótica onde, aparentemente, todos encontram uma parte do gozo, o fotógrafo e o fotografado.
Uma virilidade desprovida de poder social só pode se mostrar e medir em centímetros. Para dizê-lo com a psicanálise, ela é toda pênis e nada falo. Mas esta desvantagem social originária pode perfeitamente se reverter em seu contrário segundo o modelo da dialética hegeliana do mestre e do escravo. Nesta, o mestre delegou e assim perdeu para o escravo o poder e a capacidade de transformar a matéria e a natureza.
Aqui, o mestre, ocupado demais com as equivalências simbólicas de sua virilidade, parece perder para o escravo sua virilidade carnal. Vingança realizada da história: o escravo -feminizado por seu trágico destino, reduzido e forçado a demonstrar algum poder pela permanente ereção de seus músculos e de seu sexo- acaba encarnando a única imagem do desejo sexual. Ele se torna um, ou melhor, o fetiche social.
A ameaça não é, como se diz e pensa comumente, que eles possam possuir "nossas mulheres. A verdadeira ameaça, o medo, é que "eles já sejam a única imagem social de qualquer coisa que possa carnalmente possuir, ou seja, a imagem dominante da potência sexual. O homem negro seria, assim, desejado (e receado) por todos, homens e mulheres. Pois seria o próprio símbolo do sexo.
Como os clientes de K. excitados pela loira, o homem negro pode dificilmente resistir ao apelo: se o lugar que a sociedade lhe reserva é aquele de simulacro da virilidade, fetiche coletivo, como não ocupá-lo? Desempregado, denunciado como aproveitador assistido de um Welfare State generoso, o negro poderia acabar sendo um pênis de uso coletivo sustentado, como Sócrates queria ser, pelo dinheiro público, no pritaneu das fantasias sexuais.
Assim, o homem negro joga a carta que lhe é oferecida. O Black Power faz do estereótipo da virilidade do macho negro um cavalo de batalha, até a paródia. Leonard Jeffrey, em suas aulas enlouquecidas onde tenta demonstrar que Deus era negro e os sionistas inventaram a escravatura, se orgulha de ter sido chamado por homens brancos para satisfazer suas mulheres. E um ``homeless" negro, na calçada de meu prédio, investe mulheres brancas para pedir troco e, quando estas fogem assustadas, pergunta sardônico: "Por que têm tanto medo de mim?
A rua 128 e a ``brownstone" de K. não são o único observatório, mas a fixidez das relações interraciais nos EUA, vista daí, tem toda a viscosidade de um devaneio erótico.