domingo, 24 de julho de 1994

Vestida de feliz, a criança é a caricatura da felicidade impossível

Como amamos as crianças! Nenhuma passa perto sem levar uma carícia. Mas por que as amamos tanto? Não é nada natural. Em nossa história passada, não as amamos sempre do mesmo jeito, nem tanto assim.

A infância, como mostrou Philippe Ariès ("História Social da Criança e da Família"), é uma invenção moderna. Este tempo separado da vida adulta, protegido pelo amor parental, miticamente feliz, surgiu em nossa cultura há apenas dois séculos, quando o individualismo triunfou no Ocidente.

É neste momento –também lembra Ariès– que a morte cessou de ser vivida como um acidente ao qual sobreviveriam a cadeia das gerações e a ordem social, para se tornar a irremediável e trágica desaparição dos indivíduos. Para quem a morte é o fim de tudo, só as crianças trazem consolo, representando alguma promessa de imortalidade.

Do mesmo jeito, naquele momento-chave de nossa cultura, a idéia de felicidade mudou de rumo: aos poucos parou de se alimentar na calma de uma ordem estabelecida ou na visão futura de novas relações sociais, para ser um direito do indivíduo. Direito cujo exercício não é nunca perfeito, e que se torna um dever para os herdeiros: nossas crianças.

Não estranha então que Freud (embora convencido de estar descrevendo um universal trans-histórico) nos dê esta explicação do amor moderno pelas crianças: as amamos como ectoplasmas de uma perfeição que os avatares da vida já nos recusaram. Delas esperamos que nos ofereçam a imagem de uma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi a nossa, mas graças à qual podemos amar a nós mesmos. Olhamos para elas como para uma foto de nossa infância onde queremos parecer felizes. E para isso as protegemos, cuidamos e satisfazemos.
A criança é a caricatura da felicidade impossível: vestida de feliz, isenta das fatigas do sexo e do trabalho, idealmente despreocupada.

Pois bem, será que hoje nosso amor para as crianças é ainda aquele que surgiu com a modernidade? Será que a infância que nossa cultura inventou ainda existe e resiste? Já Ariès, nos meados dos anos 70, duvidava que a infância por ele trazida à luz ainda durasse.

As aparências podem ser significativas: não vestimos mais as crianças de crianças, mas de "adultos em miniatura", como assinala Olivier Mongin no seu artigo (à pág. 6-7). Dir-se-á que particularmente aqui no Brasil são os adultos que se vestem como crianças. De fato, as crianças se fantasiam de adultos de fim de semana. Desses, elas adotam os modos, as pretensões e o incômodo imperativo de aproveitar a vida.

As coisas mudaram aos poucos; nosso olhar procurava a sossegada imagem de uma felicidade infantil em um mundo encantado, feito de vestidinhos de renda e blusas de marinheiro. Depois, desejosos de garantir à criança um acesso à vida adulta, mesmo ao custo de comprometer o mundo de Oz, passamos a vesti-las de terno e gravata ou de saia plissée.

Hoje –síntese hegeliana– elas seguem a imagem da felicidade dos adultos: roupa esporte e fantasias de Xuxa. Ao instantâneo desbotado do nenê sem sexo, à foto amarelada do homenzinho e da mulherzinha de blazer, se substituiu um cartão postal que se parece com o folheto publicitário de um pacote de férias, vôlei na praia e promessas eróticas.

Na mesma linha, o ideal proposto à criança não é mais o porto seguro de um quadro familiar ordenado pelas gerações, nem a antecipação de uma adaptação ao mundo dos grandes, mas, como mostram Alfredo Jerusalinsky e Eda Tavares (leia artigo à pág. 6-5), é a identificação com o super-herói cuja única dependência é com um objeto mágico. Como não constatar que a felicidade que queremos contemplar nelas é a caricatura de nossos devaneios? As queremos paradoxalmente livres de nós, assim como sonhamos ser livres de nossos pais, e possuidoras de objetos, pois atribuímos aos objetos o valor de talismãs.

A nova forma de amor consiste em suma em querê-las independentes de penosas obrigações (contrariamente aos grandes), mas (como os grandes) dependentes dos objetos de satisfação que tentamos colocar ao alcance de sua mão. Não é de estranhar que isso as destine com frequência à adição. Pois a equação simbólica não escapa a ninguém, que vai do cinto de Armani ao martelo de Thor e acaba na heroína (o alcalóide).

Também não seria de estranhar que as crianças, de repente, possam se tornar tão assassinas e cruéis quanto nós. Pois os "adultos em miniatura", para serem felizes, devem manter da infância justamente a isenção daqueles estorvos que nos fazem tão pouco amáveis aos nossos próprios olhos; o peso do dever e da dívida com as gerações anteriores, a hesitação do juízo moral, o rigor da Lei. Em suma, queremos que sejam anões de férias sem lei. E podem acabar sendo.

Se precisasse datar esta nova forma de amor, pela qual as crianças são convidadas a uma rebeldia que lhes outorgue a felicidade que queremos para nós, sem dúvida o fim dos anos 60 seria o momento. Neste sentido, maio de 68 obedeceu, paradoxalmente, ao mandato do narcisismo parental: sejam realistas, peçam o impossível (que não conseguimos para nós).

Interessante que, no Ocidente, a UTI da satisfação afogou o movimento em um mar de objetos, pílulas e drogas. No Oriente, onde este recurso não se deu e onde o conflito foi agudo entre as culturas tradicionais e a irrupção deste novo amor pelas crianças, exportado pela triunfante mundialização de nossa cultura, se soltaram bandos de adolescentes assassinos (a Revolução Cultural chinesa, ou os Khmer vermelhos).

Certamente, a heroína não é a cola de sapateiro e no filme "O Bom Filho" (The Good Son) não é uma criança de rua. De qualquer forma, o fato marcante do novo amor parental para os "adultos em miniatura" é o número crescente de crianças dele excluídas. Só dois exemplos, brasileiros, que, à primeira vista, parecem contradizer a idéia de amor narcísico indiscriminado pelas crianças.

A prostituição infantil é, neste país, quase endêmica (pouco importa a discussão ao redor dos números). Deixemos de lado também as besteiras que pretensos clínicos puderam sugerir a este respeito sobre a eventual pedofilia dos clientes. A prostituição infantil no Brasil não é um prato fino e proibido para clientes tortos e exigentes.

Ao contrário, ela se oferece barata nas zonas mais populares; se destina ao consumo cotidiano: cerveja com menina. Preferiríamos acreditar que o cliente seja um perverso desregrado. Pois é inaceitável para nós que um corpo infantil seja objeto de desejo sexual. Isso é um corolário da infância moderna: por amar narcisicamente as crianças, por querer que sejam imagens de uma apatetada felicidade afastamos delas um desejo sexual que o Antigo Regime lhe reconhecia sem hesitações. E, embora a situação mude, a regra continua valendo.

O "adulto em miniatura" que amamos, agora deveria nos oferecer a imagem de uma felicidade também sexual, mas preferimos que a farsa se jogue entre anões. Assim não hesitamos em incentivar patéticas reuniões dançantes e shows no escuro entre estupefatas e angustiadas crianças de sete, oito, nove anos. Mas ainda resistimos a conceber que as mesmas crianças possam ser objeto sexual de um adulto. A coisa sujaria o encanto da festa. Como é possível, então, que neuróticos como a gente possam reconhecer em um corpo infantil um corpo sexual?

Segundo exemplo. Em um livro notável, "Death Without Weeping" (University California Press, 1992), Nancy Scheper-Hughes relata seu longo trabalho de campo na zona da mata de Pernambuco. No centro do livro está a descoberta da aparente ausência de luto nas mães das pequenas vítimas da mortalidade infantil. Scheper-Hughes constata que o luto só se manifesta se a criança vier a morrer tendo ultrapassado os primeiros tempos críticos. Ou, como se expressam as mães, quando ela tiver manifestado uma obstinada "vontade de viver".

Eis um amor materno que não parece narcísico. Será um resto do passado? Ariès, justamente, descreve, para o Antigo Regime, uma relação com mortalidade infantil similar a que Hughes verifica.

Há, para dar conta desses dois exemplos, o recurso possível à tese da Belíndia, do Brasil duplo, arcaico e moderno (cara a Roberto da Matta, por exemplo). As crianças da classe média para cima seriam narcisicamente amadas e cada vez mais como caricaturas de adultos felizes. E as crianças daí para baixo, restos arcaicos do passado, seriam amadas como antes da invenção da infância. Sua morte seria uma perda social, mas não narcísica. seus corpos poderiam ser objetos de desejo sexual pois a sexualidade lhes seria reconhecida.

Ora, acontece que frequentemente, e não só no Brasil, em condições de miséria extrema, o amor parental parece seguir caminhos diferentes do amor narcísico. É dispensado o luto da morte dos mais jovens, torna-se possível a erotização do corpo infantil, e também a exploração da criança no trabalho ou simplesmente sua venda ou abandono. E isso em circunstâncias e lugares onde o recurso à idéia de um resto social arcaico é impossível.

Como, então, a miséria real teria o poder de mudar nossa relação às crianças, ao ponto que o amor que lhes é destinado não pareceria mais obedecer às regras de nosso moderno amor narcísico por elas?

Não é por falta de narcisismo parental. É por excesso. Em uma sociedade tradicional, o que decide a dignidade subjetiva não é o real. Você é marquês mesmo se muito mal servido pela natureza ou financeiramente arruinado. Em uma sociedade individualista, ao contrário, um real ingrato pode privar facilmente o sujeito de qualquer dignidade. Por exemplo: um defeito físico ou a miséria real podem e de fato comprometem o investimento narcísico parental.

O amor pelas crianças em uma sociedade tradicional é incondicional, embora menos espalhafatoso: elas são amadas como garantias e apostas na reprodução social, como descendentes. Nosso amor narcísico, ao contrário, impõe condições. Pois a criança que, por razões reais, não pudesse corresponder aos nossos devaneios, não é mais nada. Seu corpo, desinvestido narcisicamente, se oferece ao sexo, sua morte não nos afeta, pois, de qualquer forma, ela não poderia mesmo, realmente, ser o espelho miniaturizado de nossa felicidade.

Dir-se-á que esta hipoteca sobre o amor para as crianças só se verificaria nas margens do império, aqui no Brasil, por exemplo, onde as crianças podem ser prostituídas, abandonadas, assassinadas.

Ledo engano: o Brasil, ao contrário, é um revelador. O Primeiro Mundo se diferencia de nós –neste caso– só por suas tentativas desesperadas de resistir a esta trágica implicação cultural.
Assim decretam-se em todo lugar estatutos e direitos da criança e do adolescente, para protegê-los de um amor tão louco que se torna precário, suspenso à condição que o jovem realmente possa satisfazer nosso narcisismo.

Assim faz-se –como nos EUA– do estupro de criança o crime da década. Procuram-se, até por memória assistida, lembranças de atrocidades cometidas por pais indignos, padrastos e madrastas. A suspeita paranóica e o medo aliviam e permitem afastar uma violência que é provavelmente a nossa própria contra as crianças que se aventurassem a não ser as de nossos sonhos. E será que o mundo permite que as crianças realizem nossos sonhos?

Ora, nenhum aumento estatístico da criminalidade contra as crianças parece justificar a preocupação parental. Único dado significtivo: aumentou sim, nos últimos anos, a independência das crianças, cada vez menos integradas em quadros familiares, cada vez mais sozinhas. Efeito dos tempos, da instabilidde dos casais, do mercado do trabalho, certo, mas também de um narcisismo parental que cada vez mais vê na criança o adulto. Com a implicação que sabemos, ou seja, a vontade de abandoná-la se ela não corresponder a uma espera em última instância impossível.

Assim, enfim, cultiva-se a pena e a indignação frente à imagem do miudinho faminto, destroçado, abandonado e perdido (isso também começou em 68: lembram de Biafra?). Chorar seu triste destino, assisti-lo, salvá-lo é uma verdadeira catarse social, pela qual provamos que ainda conseguimos amar a todas as crianças, mesmo as menos avantajadas. O anseio assistencial é uma vasta defesa contra um amor das crianças que, na verdade, é cada vez menos universal. Pois, se as crianças não são amadas por ser descendência, mas por ser a imagem de nossa felicidade, com efeito, que me importa a criança do vizinho? Só é amável a minha.

Em suma, as crianças estão mal na foto. Sobretudo porque a foto na qual gostaríamos que sorrissem é nossa última foto de férias. E precisaria que estivessem à altura de se dar as férias que nós nunca conseguimos viver. Para elas, o peixe brandido deveria ser de verdade, a moça ao lado deveria ter sido mesmo uma tórrida aventura, o sol deveria ter brilhado o tempo todo. Se não for assim, por que amá-las?

Mas não tem problema: logo a engenharia genética resolverá de vez os embaraços de nossa pedagogia, e nos oferecerá, como crianças, clones felizes, construídos à imagem e semelhança de nossos sonhos.

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