Recentemente, um jovem brasileiro conseguiu asilo político nos Estados Unidos. Sua escolha sexual homoerótica justificou o pedido, que foi aceito por um juiz de San Francisco. (A decisão, aliás, cria um precedente que pode acarretar consequências surpreendentes. Visto o anseio migratório atual, o estado de Minas Gerais, por exemplo, poderia assistir a um inexplicável aumento do homoerotismo declarado e assumido de suas mais jovens gerações. O futuro estudioso dos costumes que se cuide na interpretação dos dados).
Há sem dúvida uma discriminação (não instituída, mas efeito de prejuízo) contra o homoerotismo no Brasil. Imaginemos que ela seja matéria suficiente para invocar um direito de asilo. Tal pedido só poderia ser recebido se for endereçado a uma nação isenta de prejuízo, segura de seu indiscutível respeito por esta escolha erótica. Para entender: faria sentido que o Iraque aceite o pedido de asilo político de um independentista curdo de nacionalidade turca?
Ora, menos de dois anos atrás, a "Newsweek International" publicava uma sondagem de opinião. A pergunta: "Será que os direitos dos gays constituem uma ameaça à família americana e seus valores?", 45% dos entrevistados respondia "Sim". A resposta, apenas minoritária, sugere um clima nada paradisíaco para um jovem gay nos EUA.
Que nosso juiz fosse de San Francisco, onde mora a maior comunidade gay dos EUA, tampouco explica sua decisão, a qual tem valor federal. Ao contrário, um juiz californiano, por sua proximidade da comunidade gay, dificilmente seria desinformado a ponto de pensar que os brasileiros sejam mais homófobos do que os norte-americanos. Resta assim supor que ele não concedeu o asilo político nem por causa de duvidosas perseguições brasileiras, nem por causa de duvidosas seguranças norte-americanas.
A escolha do juiz não se funda na verdade dos fatos; ela parece querer resgatar a culpa desses fatos. Em outras palavras, a razão da escolha do juiz não é o eventual desconhecimento da tolerância brasileira e da homofobia americana. A razão de sua escolha são as próprias manifestações homófobas nos EUA, como no Brasil. A culpa destas mesmas manifestações é que parece produzir uma necessidade de compensação. Desta decisão é o juiz que espera sair inocentado; é ele que entra culpado na câmara e decide não segundo sua consciência, mas segundo sua culpa, ou –ainda– assimilando sua consciência à culpa social.
Do mesmo jeito, Mike Tyson está ainda na prisão. Ele não está pagando um crime duvidoso, ele está resgatando uma culpa social relativa às mulheres. Se a pretensa vítima de Tyson fosse branca, a coisa complicaria, pois a culpa para com os negros teria produzido um conflito de culpas jurídicas. Entenda-se de novo: culpas dos jurados e dos juízes e não do réu.
O poder judiciário não tem o monopólio da culpa, longe disso. Sua "alma mater" seria antes a universidade, tradicional caldeirão da sensibilidade progressista. Lembremos a história de Leonard Jeffrey (veja-se o excelente artigo de J. Traub, "The New Yorker", 7/6/93). Jeffrey tornou-se professor e chefe do Departamento de Black Studies da City University of New York desde o embalo de sua criação. Era o fim dos anos 60, após o assassinato de Martin Luther King, e a chantagem devia funcionar: "Os programas separados de Black Studies ou o caos".
Que se tenha cedido a essa exigência de uma comunidade discriminada e ferida é normal. Mas por que isso implica que uma universidade desista de sua vocação própria e permita a deriva de tais departamentos em oficinas de ideologias racistas e separatistas sem mesmo o pudor de um semblante de dignidade acadêmica? Essa desnecessária desistência só parece se explicar pelo sentimento de culpa. (Note-se que isto não é sempre o caso; vários departamentos de Black Studies produziram e produzem contribuições essenciais, por exemplo, à historiografia americana).
Assim, Jeffrey, sem qualquer qualificação acadêmica significativa, ocupou durante anos uma cadeira de onde propagou doutrinas falsas, teorias semitas, incitação ao ódio racial etc. O silêncio da Cuny não foi covardia, mas culpa. O caso acabou explodindo a partir de uma palestra pública em 91. De toda parte sua exclusão foi pedida e a Cuny foi bem feliz em ceder à pressão cultural e política. Mas eis que, em maio de 93, um júri federal, colega do juiz de San Francisco, considerou que a decisão da Cuny era lesiva aos direitos constitucionais de Jeffrey e condenou a Cuny a indenizar em US$ 400 mil e a reinstalar em seu ofício esta tragicômica figura.
A culpa, em suma, parece reinar soberana. Os incrédulos poderão ler o excelente livro de Robert Hughes ("A Cultura da Reclamação", Companhia das Letras, 1993) e verificar que ela pode destituir a verdade, comprometer a memória, erigir-se em critério moral e mesmo decidir do juizo estético (pois a arte se torna prerrogativa da vítima). Mas será que invocar a verdade, a memória, a moral ou mesmo o gosto é uma resposta possível?
Jeffrey contava e conta bobagens (por exemplo, uma cosmogonia que atribui ao judaísmo a origem da escravatura e nega sua existência na Africa islâmica e negra bem antes que o comércio ocidental se interesse em explorá-la). Seria fácil fazermo-nos aqui de paladinos da "verdade" contra uma ideologia barata. Mas, se tomássemos a defesa dos "fatos", todos –o juiz de San Francisco e os Jeffreys da vida– nos diriam provavelmente que qualquer verdade serve sempre a interesses escusos. Em outras palavras, eles nos diriam que a "justiça" deve estar acima da verdade e não o contrário.
Desse ponto de vista, os fatos ou a história como nós os contamos, de qualquer forma, sempre seriam a epopéia da qual necessitamos para dar um sentido ao nosso presente e ao nosso futuro. Entre os "Jeffreys" e nós, então, não haveria nenhuma diferença de fundo. Só se oporiam aqui diferentes versões da história americana: uma (aquela da qual seríamos acusados de ser os defensores) que alvejaria os progressos da nação, outra (a de Jeffrey) que alvejaria a separação dos negros norte-americanos, outra ainda (a do juiz de San Francisco) que alvejaria a separação social segundo as escolhas sexuais etc.
No final das contas, cada versão valeria tanto quanto as outras. E deveríamos pensar que talvez estejamos só assistindo a uma transformação do tecido social, onde decai a comunidade de destino, que é tradicionalmente uma nação –ou que quis ser, por exemplo, o proletariado– e surgem novos destinos coletivos para os quais se constróem novas histórias e novos mitos: as mulheres, os gays, os negros etc.
Se assim fosse, nossa aparente insatisfação com a desagregação social que esta transformação parece impor, não seria nada mais do que uma nostalgia babaca. Mas é legítimo se perguntar que mundo promete esta nova sensibilidade progressiva. Ou ainda se os grupos de "vítimas", que parecem se substituir, por exemplo, à classe ou à nação, anunciam, como pretendem, uma nova política, ou então testemunhem, quer se queira quer não, uma época, a nossa, onde a ação propriamente política parece cada vez mais difícil.
Parabéns para você. Hoje é aniversário do seu blog, hein? Sei que não responderá o comentário, oK. Mas fica aqui o meu abraço pelos 16 anos do seu blog. Gosto de ler coisas inteligentes na internet para pensar, por isso vou me fazer muito do uso da sua revista eletrônica.
ResponderExcluirUm abraço
Deborah