Um terapeuta deve deixar suas opiniões e crenças no vestiário do consultório, a cada dia |
EM 31 de julho, o Conselho Federal de Psicologia repreendeu a psicóloga Rozângela Alves Justino por ela oferecer uma terapia para mudar a orientação sexual de pacientes homossexuais.
Não quero discutir a "possibilidade" desse tipo de "cura" (afinal, reprimir o desejo dos outros e o nosso próprio é uma atividade humana tradicional), mas me interessa dizer por que concordo com a decisão do Conselho.
A revista "Veja" de 12 de agosto publicou uma entrevista com Alves Justino, na qual ela explica sua posição. No fim, a psicóloga manifesta seu temor do complô de um "poder nazista de controle mundial", que estaria querendo "criar uma nova raça e eliminar pessoas", graças a políticas abortistas, propagação de doenças sexualmente transmissíveis etc.
Para ser psicoterapeuta, não é obrigatório (talvez nem seja aconselhável) gozar de perfeita sanidade mental. É possível, por exemplo, que um esquizofrênico, mesmo muito dissociado, seja um excelente psicoterapeuta (há casos ilustres). Mas uma coisa é certa: para ser terapeuta, ser inspirado por um conjunto organizado de ideias persecutórias é uma franca contraindicação.
Na verdade, pouco importa que as ideias em questão sejam ou não persecutórias e delirantes: de um terapeuta, espera-se que ele deixe suas opiniões e crenças (morais, religiosas, políticas) no vestiário de seu consultório, a cada manhã. Quando, por qualquer razão, isso resultar difícil ao terapeuta, e ele sentir a vontade irresistível de converter o paciente a suas ideias, o terapeuta deve desistir e encaminhar o caso para um colega. Por quê?
Alves Justino, com sua aversão por homossexualidade, sadomasoquismo e outras fantasias sexuais, ilustra a regra que acabo de expor. Explico.
A psicóloga defende sua prática afirmando que a psiquiatria e a psicologia admitem a existência de uma patologia, dita "homossexualidade ego-distônica", que significa o seguinte: o paciente não concorda com sua própria homossexualidade, e essa discordância é, para ele, uma fonte de sofrimento que poderíamos aliviar -por exemplo, conclui Alves Justino, reprimindo a homossexualidade.
De fato, atualmente, psiquiatria e psicologia reconhecem a existência, como patologia, da "orientação sexual ego-distônica"; nesse quadro, alguém sofre por discordar de sua orientação sexual no sentido mais amplo: fantasias, escolha do sexo do parceiro, hábitos masturbatórios etc. Existe, em suma, um sofrimento que consiste em discordar das formas de nosso próprio desejo sexual, seja ele qual for (alguém pode sofrer até por discordar de sua "normalidade"). Pois bem, nesses casos, o que é esperado de um terapeuta?
Imaginemos um nutricionista que receba uma paciente que se queixa de seu excesso de peso, enquanto ela apresenta uma magreza inquietante: ela tem asco da forma de seu próprio corpo, que ela percebe como enorme e que ela não aceita como seu. O nutricionista não tentará nem emagrecer nem engordar sua paciente, pois o problema dela não é o peso corporal, mas o fato de que ela discorda de si mesma a ponto de não conseguir enxergar seu corpo como ele é.
No caso da orientação sexual ego-distônica, vale o mesmo princípio: o problema do paciente não é seu desejo sexual específico, mas o fato de que ele não consegue concordar com seu próprio desejo, seja ele qual for. As razões possíveis dessa discordância são múltiplas. Por exemplo, posso discordar de meu desejo sexual porque ele torna minha vida impossível numa sociedade que o reprime (moral ou judicialmente) e cujas regras interiorizei. Ou posso discordar de meu desejo porque ele não corresponde a expectativas de meus pais que se tornaram minhas próprias. E por aí vai.
Nesses casos, o terapeuta que tentar resolver o problema confiando em sua visão do mundo e propondo-se "endireitar" o desejo de quem o consulta, de fato, só agudizará o conflito (consciente ou inconsciente) do qual o paciente sofre. Ora, é esse conflito que o terapeuta deve entender e, se não resolver, amenizar, ou seja, negociar em novos termos, menos custosos para o paciente. Em outras palavras, diante da ego-distonia, o terapeuta não pode tomar partido nem pelo desejo sexual do paciente, nem pelas instâncias que discordam dele.
Ou melhor, ele pode, sim, só que, se agir assim, ele deixa de ser terapeuta e vira militante, padre ou pastor.
Não quero discutir a "possibilidade" desse tipo de "cura" (afinal, reprimir o desejo dos outros e o nosso próprio é uma atividade humana tradicional), mas me interessa dizer por que concordo com a decisão do Conselho.
A revista "Veja" de 12 de agosto publicou uma entrevista com Alves Justino, na qual ela explica sua posição. No fim, a psicóloga manifesta seu temor do complô de um "poder nazista de controle mundial", que estaria querendo "criar uma nova raça e eliminar pessoas", graças a políticas abortistas, propagação de doenças sexualmente transmissíveis etc.
Para ser psicoterapeuta, não é obrigatório (talvez nem seja aconselhável) gozar de perfeita sanidade mental. É possível, por exemplo, que um esquizofrênico, mesmo muito dissociado, seja um excelente psicoterapeuta (há casos ilustres). Mas uma coisa é certa: para ser terapeuta, ser inspirado por um conjunto organizado de ideias persecutórias é uma franca contraindicação.
Na verdade, pouco importa que as ideias em questão sejam ou não persecutórias e delirantes: de um terapeuta, espera-se que ele deixe suas opiniões e crenças (morais, religiosas, políticas) no vestiário de seu consultório, a cada manhã. Quando, por qualquer razão, isso resultar difícil ao terapeuta, e ele sentir a vontade irresistível de converter o paciente a suas ideias, o terapeuta deve desistir e encaminhar o caso para um colega. Por quê?
Alves Justino, com sua aversão por homossexualidade, sadomasoquismo e outras fantasias sexuais, ilustra a regra que acabo de expor. Explico.
A psicóloga defende sua prática afirmando que a psiquiatria e a psicologia admitem a existência de uma patologia, dita "homossexualidade ego-distônica", que significa o seguinte: o paciente não concorda com sua própria homossexualidade, e essa discordância é, para ele, uma fonte de sofrimento que poderíamos aliviar -por exemplo, conclui Alves Justino, reprimindo a homossexualidade.
De fato, atualmente, psiquiatria e psicologia reconhecem a existência, como patologia, da "orientação sexual ego-distônica"; nesse quadro, alguém sofre por discordar de sua orientação sexual no sentido mais amplo: fantasias, escolha do sexo do parceiro, hábitos masturbatórios etc. Existe, em suma, um sofrimento que consiste em discordar das formas de nosso próprio desejo sexual, seja ele qual for (alguém pode sofrer até por discordar de sua "normalidade"). Pois bem, nesses casos, o que é esperado de um terapeuta?
Imaginemos um nutricionista que receba uma paciente que se queixa de seu excesso de peso, enquanto ela apresenta uma magreza inquietante: ela tem asco da forma de seu próprio corpo, que ela percebe como enorme e que ela não aceita como seu. O nutricionista não tentará nem emagrecer nem engordar sua paciente, pois o problema dela não é o peso corporal, mas o fato de que ela discorda de si mesma a ponto de não conseguir enxergar seu corpo como ele é.
No caso da orientação sexual ego-distônica, vale o mesmo princípio: o problema do paciente não é seu desejo sexual específico, mas o fato de que ele não consegue concordar com seu próprio desejo, seja ele qual for. As razões possíveis dessa discordância são múltiplas. Por exemplo, posso discordar de meu desejo sexual porque ele torna minha vida impossível numa sociedade que o reprime (moral ou judicialmente) e cujas regras interiorizei. Ou posso discordar de meu desejo porque ele não corresponde a expectativas de meus pais que se tornaram minhas próprias. E por aí vai.
Nesses casos, o terapeuta que tentar resolver o problema confiando em sua visão do mundo e propondo-se "endireitar" o desejo de quem o consulta, de fato, só agudizará o conflito (consciente ou inconsciente) do qual o paciente sofre. Ora, é esse conflito que o terapeuta deve entender e, se não resolver, amenizar, ou seja, negociar em novos termos, menos custosos para o paciente. Em outras palavras, diante da ego-distonia, o terapeuta não pode tomar partido nem pelo desejo sexual do paciente, nem pelas instâncias que discordam dele.
Ou melhor, ele pode, sim, só que, se agir assim, ele deixa de ser terapeuta e vira militante, padre ou pastor.
Não concordo com a idéia dela, apesar do lance estar embasado e coisa e tal, mas me diga (e mudando de assunto), embuído de quê, então, um terapeuta se senta em frente ao paciente?
ResponderExcluirSe a crença de um psicanalista é a conduta psicanalítica, o que ele deixa de fora, junto com casaco pendurado?
Não seria então o psicanalista alguém muito neutro na relação terapeuta-paciente? Se sim, qual a necessidade dele?
Em tempo: as perguntas são todas sinceras, não irônicas.
Abraço
Uma surpresa seu blog. E uma decepção. Parece que tudo mesmo ficou no vestiário e, de fora, os anúncios do google, os comentários quase zerados, o dinheiro em caixa, e o grau zero de contato com o autor.
ResponderExcluirAo proprietário do blog: sugiro fechar os comentários.
ResponderExcluirAs pessoas acham que estão falando com o C.C. e não terão as respostas esperadas.
Abraço
Esta dissassociação que tem que existir do mundo do terapeuta vale para qualquer atividade que tentamos entender o outro, independente de quem seja e para o que seja
ResponderExcluirEu curo um DESEJO EGO DISTÔNICO em 50 minutos , e faço isso pautado em uma frase de Immanuel Kant - "A FINALIDADE SUBJETIVA É PENSADA ANTES DE SER SENTIDA" . Não devo ajudar às pessoas que me pedem ajuda ? Ontem acabei de tratar meu paciente de número 242 . É errado ?
ResponderExcluirNÃO discorde de seu DESEJO , sr. Contardo Calegaris ! Vá DAR o cú !
ResponderExcluirÉ muito complicado,as vezes, entender o que significa esse "deixar no vestiário",foste claro e objetivo! Mas pra escolher ser analista,terapeuta,enfim,não é sair da universidade e abrir consultório!São aaaanos de supervisão,equivocos,retomadas,análise pessoal(que ajuda mais que supevisão).Parabéns pela "coragem"de manter um blog!Mas também senti falta do contato com o autor.Abr.
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