quinta-feira, 24 de junho de 2004

"Cazuza"

Estreou, na semana passada, "Cazuza - O Tempo Não Pára", de Sandra Werneck e Walter Carvalho.

O desfecho trágico da história é conhecido por todo mundo. Apesar disso, ela me proporcionou momentos de grande alegria. Mas não é só isso, não é só uma questão de momentos.
O filme me deixou numa espécie de felicidade pensativa. Tento explicar por quê.

Cazuza mordeu a vida com todos os dentes. A doença e a morte parecem ter-se vingado de sua paixão exagerada de viver. É impossível sair da sala de cinema sem se perguntar mais uma vez: o que vale mais, a preservação de nossas forças, que nos garantiria uma vida mais longa, ou a livre procura da máxima intensidade e variedade da experiência? Melhor viver a mil (e menos tempo) ou viver com moderação (e mais tempo)?

Digo que a pergunta se apresenta "mais uma vez" porque a questão é hoje trivial e, ao mesmo tempo, persecutória. É melhor ficarmos acordados até tarde pelo prazer da companhia ou voltar logo para casa e para a cama, já que, de manhã cedo, será a hora da esteira e da bicicleta? Vamos transar no domingo à noite ou será que a segunda é um dia muito pesado?

Obedecemos a uma proliferação de regras que são ditadas pelos progressos da prevenção. Ninguém imagina que comer banha, fumar, tomar pinga, transar sem camisinha e combinar, sei lá, nitratos com Viagra seja uma boa idéia. De fato, não é.

À primeira vista, em suma, parece lógico que concordemos sem hesitação sobre o seguinte: não há ou não deveria haver prazeres que valham um risco de vida ou, simplesmente, que valham o risco de encurtar a vida. De que adiantaria um prazer que, por assim dizer, cortasse o galho sobre o qual está sentado?

Mas, por trás dessa obviedade, esconde-se um estranho momento na história da moralidade. Durante muitos séculos, constatamos que a carne era fraca e que o espírito tinha sérias dificuldades em conter seus ímpetos. Ultimamente, encontramos uma solução elegante: delegamos à carne a tarefa de controlar a carne. A experiência dos prazeres deveria ser contida porque é anti-higiênica, biologicamente nociva, ruim para o corpo.

Por mais que a coisa faça sentido, ela não deixa de ser curiosa. No fundo, se admitirmos por um instante que nossa escolha moral nos define, chegaremos à conclusão de que homem bom é aquele que se resguarda; o mérito humano não dependeria das coisas e causas pelas quais arriscamos a vida, o mérito seria preservar a vida de qualquer forma.

Navegamos entre os mal-encarados que nos intimam "A bolsa ou a vida!" e os bem-encarados (bem demais) que nos intimam "O prazer ou a vida!". Ambos prefeririam que escolhêssemos ficar com vida. Eles têm razão, pois quem perde a vida perde também a bolsa ou o prazer. Mas acontece que, ao responder a essa intimações, dizemos sobretudo o que caracteriza nossa vida, o que faz que ela, aos nossos olhos, valha a pena: por exemplo, a bolsa, o prazer ou um tempo suplementar.

Os jovens têm uma razão básica para desconfiar de uma moral prudente e um pouco avara que sugere que escolhamos sempre os tempos suplementares. É que a morte lhes parece distante, uma coisa com a qual a gente se preocupará mais tarde, muito mais tarde. Mas sua vontade de caminhar na corda bamba e sem rede não é apenas a inconsciência de quem pode esquecer que "o tempo não pára". É também (e talvez sobretudo) um questionamento que nos desafia: para disciplinar a experiência, será que temos outras razões que não sejam só a decisão de durar um pouco mais?

Cuidado: o filme não é uma diatribe contra a "vida louca" ou a favor dela. Tampouco ele faz desse dilema uma tragédia. Ao contrário, ele contempla nosso desamparo moral com uma ternura parecida com a dos pais do próprio Cazuza (admiráveis Marieta Severo e Reginaldo Faria). É esse carinho que mantém nosso sorriso.

O amor dos pais de Cazuza pelo filho, aliás, constitui uma das tramas mais tocantes da história. Haverá alguém para achar que Cazuza ainda estaria entre nós, se eles tivessem controlado seu filho com rigor. Outros observarão que, se isso tivesse acontecido, Cazuza nunca teria existido. Provavelmente ambos têm razão. O que significa querer que nossos filhos vinguem? É justo deixar que, pela intensidade de seus desejos, queimem a vida como um cigarro? É certo forçá-los a respeitar nosso desejo de morrermos antes deles acima das paixões que podem consumi-los? Não conheço um pai que, alguma vez, não tenha se colocado essas perguntas.

O filme é imperdível para quem é ou já foi adolescente um dia, para quem é (ou será) pai de adolescente e, em geral, para quem se pergunta ou se perguntou um dia qual é o critério do bem ou do mal quando a paixão de viver é tamanha que ela ameaça nossa própria vida.

Resta agradecer a Daniel de Oliveira por sua performance no papel de Cazuza, assim como a Fernando Bonassi e Victor Navas pelos diálogos.

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