quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Simulações perigosas


A nova lei contra a pedofilia criminaliza fantasias? Seria um precedente inquietante

COMO NOTICIOU Larissa Guimarães na Folha de 12 de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou regras mais rígidas para a punição da pedofilia. A nova formulação da lei torna mais fácil criminalizar a venda e a distribuição de pornografia infantil pela internet, assim como a posse digital (o arquivamento num computador) desse material.

Essa adaptação aos tempos era necessária e já aconteceu de maneira análoga em outros países.
Mas eis que, lendo o texto da lei, esbarrei num artigo pelo qual será punido de um a três anos de reclusão quem "simular" a participação de um menor numa cena de sexo explícito, "por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual".

Como será interpretado esse artigo? Se alguém, usando Photoshop, transformar uma fotografia pornográfica de maneira que seus atores se pareçam com crianças ou adolescentes, ele cometerá um crime? Alguém que criasse um vídeo de pornografia infantil de maneira exclusivamente digital, ou seja, sem ter que registrar cena real alguma, cometeria o mesmo crime?

O cinema já mostrou que a computação gráfica logo chegará a produzir imagens perfeitamente verossímeis: a pornografia infantil poderá dispensar o abuso efetivo de crianças e adolescentes, pois seus "atores" serão apenas seqüências digitadas num programa.

Poderíamos, apressadamente, aprovar essas interpretações da nova lei. Afinal, por mais que os vídeos pornográficos alvejados sejam invenções digitais sem referência real, resta que quem gostar deles será pedófilo e quem os produzir estará explorando e incentivando a pedofilia. Portanto, prisão neles, não é?

Pois é, cuidado: a lei moderna não pune desejos ou fantasias, mas atos. Sonhar em matar alguém que nos incomoda, à condição que a gente não tente passar ao ato, não constitui crime. Da mesma forma, por mais que o desejo do pedófilo nos repugne, o simples exercício íntimo de suas fantasias não deveria constituir crime: se alguém se masturbar, sozinho, graças a uma imagem digital cuja produção não envolveu menor, sua atividade pode ser um pecado ou uma vergonha, mas por que seria crime?

Tento ser mais claro. Pela lei moderna, o estupro é o protótipo do crime sexual: é crime agir sexualmente sem o consentimento da parceira ou do parceiro envolvidos (o caso da pedofilia é, aliás, um corolário desse princípio, pois, por definição, o menor não tem a capacidade de consentir, e o sexo, portanto, sempre lhe é "imposto").

Ora, imagens pornográficas que representam um estupro são banais, e sua produção, distribuição e posse não constituem crime. Entende-se por quê: presume-se que elas tenham sido realizadas numa simulação, com atores que concordaram em atuar naquele roteiro, e a lei não criminaliza as fantasias sexuais de quem "encena" um estupro ou de quem se excita e diverte com essa encenação.

Obviamente, o caso da pornografia infantil é diferente: um menor que atuasse numa encenação pornográfica seria vítima de abuso sexual tanto quanto se ele fosse envolvido numa cena de verdade. Mas imaginemos que a "encenação" seja produzida de maneira totalmente digital, sem ator nenhum: onde estaria o crime, senão nas fantasias de produtores e fruidores? Problema de igualdade diante da lei: por que essas fantasias constituiriam crime enquanto isso não seria o caso das fantasias de estupro?

Enfim, prefiro imaginar que o artigo de lei que citei não tenha a intenção de se aventurar no duvidoso terreno da punição de fantasias e pensamentos, mas queira apenas prever uma situação que explico a seguir. Acontece que, em tese, é impossível dizer se uma imagem ou um vídeo digitais foram gravados reproduzindo uma cena real ou sem recorrer a realidade alguma.
Ou seja, não está longe o dia em que qualquer indivíduo, preso na posse de pornografia infantil, poderá afirmar que as imagens em seu computador são apenas o registro de uma fantasia nunca atuada, mas digitalizada diretamente, como "Final Fantasy" ou "A Lenda de Beowulf". E a Justiça não terá como provar o contrário.

Uma solução possível consiste em punir produção e posse de imagens indiscriminadamente, que elas sejam devaneios digitais ou registro efetivo do abuso de um menor real. Entendo. Mas seria um precedente inquietante, em que, de fato, a lei acabaria criminalizando fantasias e pensamentos.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

"Vicky Cristina Barcelona'



O amor-paixão é uma tentação irresistível, é o protótipo da vida intensamente vivida

"VICKY Cristina Barcelona", de Woody Allen, estreou no Brasil na semana passada. Com muita leveza e muito bom humor, o filme me levou a pensar nos percalços da vida amorosa.
A história do verão em Barcelona de Vicky e Cristina é um pequeno tratado do amor-paixão: os espectadores terão o prazer (ou desprazer) de se reconhecer em algum lugar do leque de experiências amorosas que o filme apresenta -é um leque pequeno, mas do qual escapamos pouco. Sem resumir, eis umas notas:

1) Os casais que se amam de paixão, cujos parceiros parecem ser feitos um para o outro, em regra, acabam tentando se matar -com faca, revólver ou qualquer outro instrumento (cf. Juan Antonio e Maria Emilia). É porque, se o outro me completa e vice-versa, o risco é que nenhum de nós sobreviva à nossa união -ao menos, não como ente separado e distinto. Mas, por mais que seja ameaçadora, a paixão amorosa é uma tentação irresistível (cf. Cristina, Vicky, Judy) por uma razão simples: nas narrativas de nossa cultura, ela é o protótipo ideal da experiência plena, da vida intensamente vivida.

2) Por sorte ou não, o amor-paixão é raro. A maioria de nós vive relações menos "interessantes" e menos fatais -relações em que a gente se preocupa em criar os filhos, decorar a casa, ganhar um dinheiro ou jogar golfe (cf. Vicky e Doug, Judy e Mark). Não seria tão mal, salvo pelo detalhe seguinte: em geral, nesses casais "normais", ao menos um dos parceiros vive com a sensação de que sua escolha amorosa é resignada, fruto de um comodismo medroso: "O outro não é bem o que eu queria; culpa minha, que não tive a coragem de me arriscar a amar..."

Detalhe: como o amor-paixão é um ideal cultural, não é preciso ter atravessado a experiência da paixão para idealizá-la (as más línguas diriam, aliás, que é mais fácil idealizá-la sem tê-la vivido em momento algum).

3) Os que parecem não idealizar o amor-paixão passam o tempo se protegendo contra ele. Deve ser por isto que a "normalidade" amorosa pode ser insuportavelmente chata: porque ela exige a construção esforçada de defesas contra a paixão -argumentos morais e sociais, sempre mais "razoáveis" do que racionais (cf. Mark, Doug). Num casal, quem critica a doidice da paixão não parece sábio aos olhos de sua parceira ou de seu parceiro; ao contrário, ele parece, quase sempre, pequeno e um pouco covarde (cf. Vicky e Doug, Judy e Mark).

4) A paixão não é uma coisa que a gente possa encontrar saindo pelo mundo como um turista da vida (cf. Cristina). Pois não basta esbarrar na paixão; ainda é preciso encará-la quando ela se apresenta.

Pode ser que, um dia, se ela conseguir matar Juan Antonio com um tiro certeiro, Maria Emilia seja internada ou presa. Pode ser que Juan Antonio seja um sujeito amoral e, por isso, perigoso. Pode ser que Vicky seja desesperadamente normal, trocando a chance de amar por uma casa num subúrbio norte-americano (estou sendo injusto com Vicky: na verdade ela tenta...).
Mas, para mim, a mais "patológica" de todas as personagens do filme é Cristina. Sua aparente abertura para a vida ("Ela não sabia o que queria, mas sabia o que não queria", narra a voz em off) é apenas uma versão "bonita" e literária de sua "insatisfação crônica" (diagnosticada por Maria Emília, com razão). Nisso, Cristina é muito próxima da gente: ela quer e consegue brincar com a paixão, mas sem perder a ilusão da liberdade ou o sonho do que ela poderia encontrar na próxima esquina.

Por isso, sua voracidade é a do turista: tira muitas fotos pelo mundo afora, mas será que ela se deixa tocar pela vida?

5) Disse que "Vicky Cristina Barcelona" trata dos percalços da vida amorosa com leveza e bom humor; de fato, saí do cinema sorrindo, e não era o único. Mas a amiga que me acompanhava comentou: "Adorei, mas é um filme triste". "Como assim?", estranhei. Ela respondeu, com razão: "É um filme triste porque os personagens se apaixonam, vivem sentimentos fortes, mas, no fim, tudo isso não transforma ninguém. Vicky e Cristina vão embora iguais ao que elas eram no começo, sobretudo Cristina...".

Minha amiga tinha razão. O amor e a paixão não nos fazem necessariamente felizes, mas são uma festa e uma alegria porque deles podemos esperar ao menos isto: que eles nos tornem um pouco outros, que eles nos mudem. Agora, nem sempre funciona...

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Mais adultérios virtuais


Madame Bovary não sonha mais sozinha: tecla noite adentro nas salas de bate-papo da internet

A COLUNA da semana passada tratava do uso da pornografia na internet, ou melhor, apresentava os resultados de uma pesquisa segundo a qual apenas um terço das mulheres parece considerar que o uso da pornografia on-line por seu parceiro constitui uma traição. Um pressuposto da pesquisa era que os homens gostariam de pornografia muito mais do que as mulheres.

Recebi numerosos comentários, de dois tipos. Houve leitoras contestando a idéia de que a pornografia seja coisa de homem. E houve leitores e leitoras que esperavam que eu me ocupasse propriamente das relações adulterinas virtuais via Orkut, MSN etc. (as quais, de fato, despertam o ciúme e o desespero do parceiro excluído ou "traído" muito mais cruelmente do que o uso de pornografia on-line).

Concordo com as leitoras que contestam o pressuposto da pesquisa apresentada. Elas lembram que, tudo bem, talvez haja mais homens interessados em pornografia do que mulheres, mas certamente há muitas mulheres que gostam de algum tipo de pornografia.
Nossa cultura, até 40 anos atrás, preferia pensar que as mulheres não tivessem desejo sexual algum (fantasias sexuais, nem falar): melhor, portanto, desconfiar de pressupostos que parecem confinar "naturalmente" as mulheres no mundo dos bons sentimentos da mãe reprodutora (e eventualmente tolerante com as "excentricidades" do marido "tarado"). Tanto mais que, na segunda metade do século 20, os melhores textos da literatura erótica foram escritos por mulheres.

Vamos aos leitores que esperavam que eu tratasse das relações adulterinas virtuais.
Nota prévia. O uso da internet para seduzir um ou uma amante e, entre um encontro e outro, seguir dialogando com ele ou com ela não difere substancialmente do uso de cartas ou telefonemas. Ou seja, os amores e adultérios virtuais propriamente ditos são apenas as relações que se mantêm sempre na virtualidade, embora possam ser afetivamente muito relevantes para os envolvidos -talvez mais relevantes do que as relações reais com o parceiro ou a parceira com quem eles vivem.

Ora, os amores e adultérios virtuais, assim definidos, são uma prática tanto masculina quanto feminina e cada vez mais difusa. Uma leitora, Nícia Adan Bonatti, escreveu (com brilho e bom humor): "Há muitas mulheres que fogem de seu cotidiano massacrante, insosso e afetivamente estéril buscando parceiros "príncipes encantados" em suas andanças internáuticas. O feijão pode queimar na panela, mas as horas gastas na internet serão preservadas como um tesouro inexpugnável (...) É muito fácil esquecer que o parceiro de vida já foi o príncipe da vez em priscas eras, já foi o desencadeador de taquicardias homéricas antes de transformar-se no nabo de miolo mole que ronca no sofá".

Essas mulheres, ela continua, "vivem loucas aventuras virtuais, realizam desejos recônditos sem pagar preços por suas fantasias; diver- tem-se bastante, e depois lavam as mãos e recebem os maridos como se o dia tivesse sido mais um da infinita rotina".

Concordo: homens e mulheres parecem encontrar na net um instrumento novo e adequado para compensar uma insatisfação crônica com a vida que eles se permitem viver -compensar, digo, não com as quimeras solitárias de Madame Bovary, mas numa espécie de "bovarismo a dois", em que o devaneio é sustentado e, de fato, realizado pelo diálogo virtual com alguém que pode estar a milhares de quilômetros de distância e, por isso mesmo, garante facilmente a permanência do encantamento.

Conheci um casal unido, que se gostava e compartilhava com coragem as alegrias e as adversidades da vida. Um dia, cada um deles, o homem e a mulher, descobriu que o outro vivia, pela internet, um amor virtual paralelo.

O ciúme era fora de questão, visto que ambos eram traidores e traídos. Só cabia uma certa consternação: "O que aconteceu com a relação que estamos vivendo, se, para vivê-la, ambos precisamos imaginar outra?".

A leitora que citei termina seu e-mail perguntando: "O que temos, enfim, feito com nossos sonhos?". Pois é, graças à internet, conseguimos separá-los bastante radicalmente do mundo real; com isso, eles não nos ajudam a transformar nossa vida. Em compensação, devanear se tornou um prazer menos sofrido. Mme. Bovary se desesperava por não ser "outra"; nós, teclando noites a fio, podemos encontrar alguém que nos faça acreditar que somos "outros".

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Culpa branca, festa africana e socialismo



Quando o comediante faz uma piada sobre os negros, os brancos riem com 10 segundos de atraso. Esperam para ver se os negros riem antes

O COMIC STRIP Live, na segunda avenida entre as ruas 81 e 82, é um dos melhores endereços de Manhattan para quem gosta de "stand-up comedy" o espetáculo de um ator só metralhando suas piadas, sem poupar ninguém (ainda menos o público). Passaram pelo palco do Comic Strip, quando ainda não eram conhecidos, Jerry Seinfield e Eddie Murphy.

É cedo para que Barack Obama seja objeto de gozação, mas pensei no Comic Strip ao ler comentários sobre a mudança que a eleição de Obama traria às relações entre brancos e negros.
As pesquisas qualitativas mostram que, para a grande maioria da população branca, a cor da pele de Obama não foi um critério relevante.

Não por isso é o caso de decretar o fim do preconceito racial. Mas um componente do preconceito foi abalado: a culpa dos brancos, que foi, se não lavada, no mínimo seriamente aliviada pela eleição de terça-feira.

Poucos dias antes da eleição, estive no Comic Strip. Note-se que, em regra, o humor nova-iorquino ridiculariza as diferenças que convivem na cidade: irlandeses, italianos, porto-riquenhos, mexicanos e hispânicos em geral, russos, judeus ortodoxos etc., todos passam por brutais caricaturas. Paradoxalmente, a minoria que é mais poupada é a afro-americana, como se, nesse caso, a piada corresse o risco de parecer racista. É o efeito da culpa branca.

Exemplo. Um dos comediantes, naquela noite, brincou com "o atraso da risada branca": quando ele (hispânico) faz uma piada sobre os negros, os brancos riem com dez segundos de atraso. Não é que não entendam, mas eles só se autorizam a rir após verificar que os negros na platéia estão mesmo achando engraçado e rindo. Quem sabe, depois de Obama, brancos e negros possam rir ao mesmo tempo.

Na terça-feira, nos vilarejos do Quênia, havia pessoas reunidas ao redor da televisão, esperando para saber se "um queniano" seria presidente dos EUA. Pode ser que hoje essas pessoas estejam festejando como uma vitória olímpica de um atleta de sua nação. Na verdade, eles poderiam encontrar inspiração diferente na eleição de Obama. Explico.

Em outubro, no "New York Times", Nicholas Kristoff contou que o pai queniano de Barak Obama pertence à tribo Luo, uma minoria discriminada no Quênia. O colunista concluía: "A piada amarga na África Oriental é que um Luo tem mais chances de se tornar presidente nos Estados Unidos do que no Quênia".

Poucos dias antes da eleição, uma entrevistadora de televisão leu a Joe Biden (vice-presidente na chapa do Obama) uma citação famosa de Marx: "De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades"; logo ela perguntou se o candidato Obama não era marxista. Biden, quando entendeu que não se tratava de piada, caiu na gargalhada. O fato é que um dos espantalhos agitados pela campanha de McCain foi a idéia de que Obama fosse um socialista ou um comunista. Afinal, ele quer redistribuir riqueza, não quer?

A estratégia não funcionou. Os americanos, desta vez, votaram por esperança e não por medo. Além disso, impostos progressivos, ligados à renda, não incomodam a classe média dos EUA, que, ao contrário, gostaria de ver mais dinheiro destinado à melhoria de infra-estrutura e serviços públicos.

Seja como for, socialista ou não, Obama foi, de fato, eleito com o apóio dos grandes sindicatos, que ele será levado a fortalecer. Ontem, na rua 34, uma banca vendia "buttons" de Obama especificando que eles eram "Union Made in the USA", ou seja, fabricados nos EUA por trabalhadores que pertencem ao sindicato.

Ao lado dessa banca, um vendedor de DVD colocava seus heróis numa mesma coluna: Obama, Martin Luther King, Lumumba, Fidel Castro, Gandhi e Che Guevara.

Depois dizem que Obama não é um cara de esquerda...

Esta é a última crônica de Nova York. Volto para São Paulo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Os discursos

TANTO O discurso de Barack Obama quanto o de John McCain foram inspirados pela vontade de cicatrizar as feridas abertas durante a campanha e garantir a unidade da nação. Obama lembrou que será o presidente de todos, não só dos que votaram nele. Reciprocamente, McCain declarou "Obama será meu presidente" e convidou seus partidários a juntar-se a Obama no esforço de liderar o país neste tempo incerto de crise e guerras.

O verbo que McCain usou ao prometer sua ajuda ("to pledge") é o que os americanos usam para jurar fidelidade à bandeira: reconhecer o novo presidente é o que manda o interesse da nação.
Cada candidato evocou os méritos de seu concorrente. Obama homenageou o serviço heróico de McCain durante a Guerra do Vietnã, e McCain congratulou Obama por ter conseguido ser o primeiro negro a chegar à Presidência dos EUA.

Aqui McCain evocou um episódio de 1901: o então presidente Theodore Roosevelt recebeu na Casa Branca Booker T. Washington, que era, na época, o porta-voz da minoria afro-americana. Ora, em 1901, os EUA eram estritamente segregados, e Theodore Roosevelt foi criticado por admitir um negro na Casa Branca. Com isso, McCain quis lembrar o tamanho do caminho percorrido desde então e dar sua justa dimensão à vitória de Obama.

O próprio Obama evocou Martin Luther King (numa citação implícita) e contou a história de uma senhora de 106 anos que votou neste ano, embora tivesse nascido numa época em que ela não poderia votar por duas razões: por ser negra e por ser mulher. No entanto, em nenhum momento Obama deixou pensar que sua vitória fosse mais um episódio no caminho da emancipação dos negros americanos.

Essa diferença entre os dois discursos talvez seja crucial para entender o que separou os dois candidatos e fez de Obama o preferido pela imensa maioria dos jovens (de todas as etnias). McCain entendeu a vitória de Obama na perspectiva da luta de uma minoria. Mas Obama não foi o candidato de uma minoria, ele foi um candidato pós-racial, ou seja, o candidato dos que pensam que as divisões étnicas não fazem sentido. Por isso, ele seduziu os jovens.

Outro exemplo. McCain notou que a vitória de Obama devia ser motivo de orgulho para os afro-americanos. É uma declaração simpática, mas que perde de vista o essencial: a vitória de Obama foi (está sendo) motivo de orgulho para todos os americanos.

Na noite do dia 4, em Nova York, a festa durou até o amanhecer. Fora os lugares canônicos (Times Square, Harlem), por todas as ruas havia gente se abraçando -indivíduos de todas as etnias e, como se diz aqui, de todos os estilos de vida. Eles não celebravam a chegada de um negro à Presidência: eles celebravam a volta, enfim, do orgulho de ser americano.

Um comentarista da CNN constatou: "Não sei se existiu um momento na nossa história em que, como hoje, podemos sentir o orgulho do que conseguimos como nação". Bill Bennett notou que existiu, sim: foi a vitória na Segunda Guerra Mundial. O comentador observou, com razão, que desta vez foi menos trabalhoso... Bom, apesar de ter sido menos trabalhoso, como se diz no Brasil, "demorou".

Em suma, a vitória de Obama é, para McCain, um momento da emancipação dos negros. Para os eleitores de Obama (brancos, negros, etc.), ela é muito mais do que isso. De que se trata?
Para entender, é bom considerar o começo do discurso de Obama, em que ele apresenta sua vitória como a melhor resposta a todos os que podem colocar em dúvida o verdadeiro poder dos EUA, que não é o do dinheiro nem o das armas, mas o poder dos ideais americanos (democracia, oportunidades para todos, esperança...). Ou seja, a chegada de Obama à Presidência redefine a liderança dos Estados Unidos como liderança ideal. Era, obviamente, o que a maioria dos americanos queria.

Mais uma observação. Ao longo da campanha, Barack Obama mostrou nervos de aço; ele nunca perdeu seu "cool". No discurso de vitória, Obama reservou uma frase aos que "querem despedaçar o mundo": "we will defeat you", nós derrotaremos vocês. Seu tom absolutamente calmo, quase um grau zero da oratória, me fez pensar que é melhor não brincar com Obama.
Enfim, pergunta: os EUA acordaram diferentes, na quarta-feira depois da eleição? Um pouco. Na esquina da 34 com a oitava, um senhor negro pedia esmola tocando um pequeno teclado. Alguém deixou cair um dólar no copo de papel previsto para isso. O velho músico agradeceu. O passeante parou e replicou: "Sou eu que lhe agradeço por ter me feito sorrir". Nunca vi nada igual em Nova York.

Claro, é um estado de graça que não vai durar muito (já vimos isso nos dias depois do 11 de Setembro). Mas algo talvez permaneça: o sentimento de uma comunidade que está acima de seus fragmentos. Não seria pouca coisa.

Adultérios na internet



Quando, num casal, um dos dois gosta de pornografia, existe razão para se sentir traído?

MUITAS MULHERES se queixam de que o computador se tornou seu rival: os maridos passam horas, sobretudo noturnas, na internet, atrás de conteúdo erótico e, quem sabe, de encontros sexuais.

Algumas, mais atrevidas, conseguem descobrir a senha de usuário dos maridos e se familiarizam com o uso de Explorer, Safari, Firefox etc. para monitorar o "histórico" das navegações noturnas de seu parceiro. Às vezes, elas conseguem até invadir o MSN e ler outro histórico, mais incômodo: o das conversas passadas do usuário. Difícil dizer, aliás, se os maridos se esquecem acidentalmente de apagar os rastros de sua navegação e de suas conversas ou se eles os deixam de propósito.

Talvez queiram ser descobertos para acabar de vez com os subterfúgios de sua dupla vida e forçar assim uma separação que lhes permitirá, enfim, ficar no computador livremente, noite e dia.

Ou talvez eles gostem de alimentar a desconfiança de sua parceira: ao se sentirem vigiados, a um passo de serem descobertos, eles satisfazem a nostalgia de uma infância "feliz", em que "se esqueciam" de trancar a porta do banheiro, espreitando e receando a chegada da mãe.
Seja como for, o uso erótico da internet pelos maridos está se tornando argumento de brigas e divórcios.

Nesse clima, li com especial interesse o artigo de Ross Douthat, "Is Pornography Adultery?" (será que a pornografia constitui adultério?), no número de outubro 2008 do "Atlantic". O texto é especialmente instrutivo porque Douthat deixa inteiramente de lado o uso da internet para procurar encontros e aventuras "reais".

A questão que ele levanta é a seguinte: quando, num casal, um dos dois tem o hábito (geralmente, secreto) de assistir a material pornográfico (prática facilitada imensamente pela net), será que o outro se sente traído? E será que é certo sentir-se traído nesse caso?
Uma pesquisa recente entre estudantes universitários dos EUA mostra que 70% das mulheres nunca entraram num site pornô, enquanto a mesma coisa vale só para 14% dos homens. Ou seja, os homens procuram pornografia na net muito mais do que as mulheres. Essa constatação trivial confirma outra, também trivial: com muito mais freqüência do que as mulheres, os homens alimentam seu desejo com fantasias sexuais conscientes e detalhadas, uma espécie de cinema erótico de bolso. Se eles se interessam pela pornografia é porque, com sorte e dedicação, em algum canto do repertório, esperam encontrar a prova de que suas fantasias podem ser realizadas.

Na verdade, um casal funciona quando cada um consegue fazer parte das fantasias do outro. Mas Douthat argumenta de maneira um pouco diferente. Ele sugere primeiro que as mulheres poderiam tolerar com condescendência o uso da pornografia por seus parceiros, numa atitude parecida com a de pais liberais com a masturbação dos filhos pré-adolescentes. E não seria o caso, aliás, de sentir ciúmes: essa espécie de ginástica sexual masculina, ao contrário, pode alimentar o desejo do homem pela sua companheira -a qual se beneficiaria, portanto, do inócuo passatempo do marido.

Mas, Douthat continua, as coisas não são tão simples assim. Imaginemos um marido que, voltando do trabalho, pare num bar para solteiros e festeje o fim do dia sentado a um balcão sobre o qual se agitam dançarinas seminuas; a mulher deveria se sentir traída? Talvez não.
E se o mesmo marido pagar uma prostituta para vê-la transar com outro homem? Será que a coisa não complicaria? Ora, esse segundo caso não é mais próximo do uso da pornografia?
Seja como for, segundo uma pesquisa de 2003, de Bridges, Bergner & McInnis, "Romantic partner's use of pornography: its significance for women", (uso da pornografia pelo parceiro amoroso, seu significado para as mulheres, "Journal of Sex and Marital Therapy", vol. 29,1), apenas um terço das mulheres vivenciaria o uso da pornografia por seu parceiro como uma traição.

Um terço parece pouco, mas talvez a pergunta tenha sido mal colocada. Talvez diante do uso masculino da pornografia, as mulheres não se sintam tanto traídas quanto abandonadas.
A mulher que vai para cama sozinha (enquanto o marido, noite adentro, fica na sala teclando em prazeres virtuais) sofre sobretudo de exclusão, sofre por constatar que ela não faz parte dos sonhos de seu parceiro -apenas da realidade da qual ele tenta fugir.