quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Adoráveis vampiros



O adolescente é uma espécie de lobisomem que sonha com a sublime compostura dos vampiros

O S VAMPIROS estão conosco há séculos, mas eles entraram mesmo na cultura popular jovem no início dos anos 1980, com a onda "dark" e a cena "gótica".

Logo, filmes e seriados inventaram o vampiro abstinente ou "vegetariano", que luta contra seus semelhantes e protege os humanos. Com isso, o vampiro deixou de povoar nossos pesadelos e se tornou objeto de sonhos e desejos.

Mas por que especialmente uma adolescente gostaria de amar ou, quem sabe, de ser um vampiro? Para responder, basta ler a maravilhosa saga escrita por Stephenie Meyer, que já conquistou milhões de leitores pelo mundo afora. Os dois primeiros volumes, ""Crepúsculo" e "Lua Nova", já existem em português (ed. Intrínseca); o terceiro ("Eclipse") e o quarto ("Amanhecer") não vão tardar.

Também, na semana passada, estreou no Brasil a versão cinematográfica de "Crepúsculo" (gostei, embora menos do que dos livros).

Enfim, só para lembrar: a saga conta a história de Bella, uma adolescente que se apaixona por Edward, um colega de classe que é diferente dos demais- entre outras coisas, como ela descobre, por ele ser um vampiro. Claro, os amores entre humanos e vampiros são complicados. Por exemplo, os transportes da paixão podem ser perigosos (em português, ninguém duvidará que, à força de desejar, um dos amantes possa chegar a comer o outro). Isso, sem contar o descompasso pelo qual o vampiro permanecerá jovem para sempre, enquanto o humano envelhecerá. E uma pergunta para a qual não encontrei resposta: será que vampiro e humano podem se reproduzir sexualmente? Qual é o resultado do cruzamento?

Os românticos lerão na saga uma linda história em que o amor ultrapassa diferenças extremas e, por isso mesmo, deve transformar radicalmente os dois amantes. Outros pensarão nas situações em que um amante abnega seu amor e se separa pelo bem do amado ou da amada (se é que esse desprendimento é possível no amor, será que alguém pode aceitar ser abandonado pelo seu próprio bem? Questão abstrata? Nem tanto: pense nos casos em que um dos dois se descobre portador de uma doença transmissível e potencialmente letal).

Pergunta: Edward tem muito charme, mas por que uma adolescente se apaixonaria por um vampiro e ambicionaria se transformar, ela mesma, em vampiro? Há uma longa lista de razões pelas quais um humano, e sobretudo um adolescente, poderia gostar de ser vampiro, mas a mais óbvia é que os vampiros conseguem crescer, acumular experiência, viver intensamente a eternidade inteira, tudo isso sem ser escravos de um corpo que, além de mortal, é sempre, por assim dizer, excessivo- um pouco asqueroso.

O adolescente, empurrado para a bulimia por seu crescimento desordenado, se fecha na anorexia (ou tenta vomitar o que comeu) porque a perspectiva de ter um dia um corpo adulto lhe inspira repulsa: os corpos adultos são vulgares, com seu cheiro, seus roncos de barriga e de sono, suas bocas abertas mastigando e, na hora do desejo, a vontade de enfiar mãos e órgãos nos suores entre pernas e orifícios, ou mesmo de misturar línguas, salivas e bocas. Convenhamos: uma mordida no pescoço seria muito mais elegante.

Os lobisomens (que chegam no segundo volume da saga de Meyer e, portanto, estarão no próximo filme) devoram seus alimentos, desmaiam na hora de dormir e estão sempre próximos de perder o controle de si.

O adolescente é um lobisomem que sonha com a compostura dos vampiros, os quais, ao contrário, não comem, não precisam respirar nem dormir, exalam um cheiro e um hálito sublimes porque, gélidos, eles não carburam, não apodrecem, não defecam (aliás, será que urinam?).

Em suma, o vampiro é livre das indignidades dos organismos vivos, ele não precisa daqueles envergonhados "momentos humanos" em que Bella se esconde de Edward para cuidar de seu corpo (carcaça?).

Não sei se Bella se tornará ou não um vampiro (saberemos, imagino, no fim da saga). Mas estou convencido de que muitos (adolescentes e adultos) estão contemplando essa possibilidade.

É que faz bastante tempo que a gente procura um jeito de não ser "apenas" um corpo mortal, vulgar e malcheiroso. Já experimentamos de tudo: desde a fé na existência autônoma da alma até a depilação a laser, o desodorante e o fio dental três vezes por dia. Por que não o vampirismo? Poderia ser um propósito para o ano novo.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Calculando os danos



Todo crime é também crime contra a confiança, sem a qual qualquer coletividade se desfaz


A confiança, como mostrou Francis Fukuyama em livro de 1995 ("Confiança", Rocco), é a pedra angular da sociedade moderna, o que faz com que a convivência social seja minimamente harmônica, próspera e capaz de garantir o bem-estar (não só econômico) dos que vivem sob um mesmo céu. Confiança no quê? A confiança recíproca entre os cidadãos alimenta a confiança de todos na existência de uma coletividade.

Pois bem, nestes dias, a Justiça italiana levou a sério Fukuyama e o espírito natalino, reconhecendo oficialmente que, numa sociedade moderna, o crime não prejudica apenas suas vítimas imediatas, mas lesa muito concretamente a própria coletividade. Aqui vão os fatos, relatados pelo "Corriere Della Sera".

Em junho passado, em Milão, foi decretada a prisão de um grupo que dirigia uma clínica particular: o dono da clínica, médicos, cirurgiões etc. A gangue efetuava procedimentos médicos e cirúrgicos desnecessários, mesmo se danosos e cruéis, nos pacientes mais indefesos, idosos, doentes terminais etc.

Com isso, os criminosos da clínica Santa Rita inflavam o volume dos reembolsos que lhes eram devidos pelo Estado.

Até aqui, nada que nos surpreenda, não é? Mas eis que a procuradoria italiana acaba de apresentar a conta dos danos que os acusados (cujos bens já foram bloqueados) deverão compensar. Trata-se de dinheiro que eles devem à Fazenda -fora a reparação dos danos morais e materiais das vítimas diretas.

A clínica Santa Rita recebeu do Estado italiano, por tratamentos desnecessários, pouco menos de 2,7 milhões (R$ 8,5 milhões), que devem ser devolvidos. Mas a procuradoria pede também o valor de 10,8 milhões (R$ 32 milhões, quatro vezes o valor da falcatrua) não como punição abstrata, mas como compensação pelo dano que foi sofrido pela imagem do sistema sanitário italiano, pela imagem da própria Itália e pela comunidade dos cidadãos italianos.

Claro, a gangue da clínica Santa Rita infligiu perda financeira à coletividade sanitária, pois é presumível que o escândalo desencoraje os clientes estrangeiros que, sem isso, escolheriam se curar na Itália. Além disso, é possível que a notícia, circulando, desgaste a imagem do país, com conseqüências nefastas para o valor do "Made in Italy".

Da mesma forma, um assaltante da orla carioca produz um dano que vai além do relógio ou da carteira que ele rouba. A reputação da cidade piora, o turismo diminui, e, enfim, o crime prejudica a imagem do Brasil, cujo apreço internacional afeta o valor de tudo o que é brasileiro: pessoas, objetos manufaturados, investimentos possíveis etc.

Mas o pedido da procuradoria milanesa vai mais fundo; ele tenta quantificar também outro prejuízo, menos material, mas não menos importante: o prejuízo que a própria comunidade sofre pela erosão da confiança que é a condição de sua existência.

Cada crime, além dos danos quantificáveis que produz, também destrói aos poucos a confiança que permite que haja comunidade. O assalto na esquina nos rouba a todos a confiança necessária para passear na rua numa noite de verão ou para manter os vidros do carro abertos e conversar com a criança que vende chicletes no farol.

O crime da clínica Santa Rita roubou aos milaneses a confiança na medicina à qual eles devem recorrer a cada dia.

O administrador e o político corruptos nos roubam a confiança na existência de uma coisa pública e na possibilidade de inventarmos formas melhores de convivência.

Em suma, o pedido da procuradoria italiana nos lembra de que todo crime contra as pessoas ou o contra o patrimônio é também (se não sobre tudo) um crime contra a confiança, sem a qual, a longo prazo, qualquer coletividade se desfaz.

Para todos, meus votos de boas festas, ou seja, de ao menos uma semana durante a qual possamos fazer de conta que é possível confiar.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Zoé e o demônio do meio-dia



O demônio do meio-dia é o tédio moderno, efeito de um mundo com poucos mistérios

DESDE PEQUENA, Zoé, 9 anos, adora filmes e histórias de terror. Seus pedidos espantam a moça da locadora de DVDs, que, provavelmente, duvida da sanidade mental dos pais.

De fato, Zoé assiste com prazer a filmes que, às vezes, deixam insones seu irmão mais velho, suas baby-sitters e mesmo sua mãe. Talvez Zoé seja cinéfila a ponto de assistir aos ditos filmes com o distanciamento de um crítico dos "Cahiers du Cinéma". Ela desmontaria os "truques" destinados a produzir espanto nos espectadores e, com isso, os filmes lhe proporcionariam uma experiência parecida com a de um bom exorcista: ela venceria o mal desvendando seus estratagemas.

Mas a paixão de Zoé pelas histórias de terror tem outra explicação possível, que me apareceu quando Zoé quis que sua festa de aniversário fosse o cenário de um filme.

Com a ajuda de um cineasta amigo da família, Zoé e seus convidados foram co-autores e protagonistas de um curta que, claro, é a história do aniversário de uma menina, durante o qual um monstro diabólico e sedento de sangue etc.

Graças ao filme (que, aliás, é bem legal) pensei o seguinte: talvez Zoé queira sobretudo convencer-se de que sempre, mesmo no dia ensolarado de seu aniversário, há zonas de sombra, por onde andam seres repugnantes e perigosos. Alguém perguntará: "Mas por que ela gostaria de pensar assim?"

Pois é, eu acho que essa idéia é, para qualquer um, uma fonte de alívio. Explico por quê.

O Salmo 90 (na numeração Clementina) expressa a esperança de que Deus nos guarde tanto das abominações "que circulam pelas trevas" quanto "do demônio do meio-dia". Sobre o tal demônio do meio-dia muito foi escrito e dito: diferente dos diabos que se escondem nos cantos escuros, o que será esse malefício que nos espreita justamente quando o sol está no zênite e o mundo nos aparece sem sombras?
Uma leitura moderna diz que o demônio do meio-dia não é um bicho do inferno, mas é um sofrimento insidioso, específico de uma época em que faltam cantos escuros.

Ele é nossa própria tristeza, a depressão e o tédio produzidos por um mundo com poucas sombras e poucos mistérios.

Em outras palavras, as luzes da razão e da ciência acabaram com aquele sentido que só uma transcendência (divina ou diabólica, benéfica ou maléfica, tanto faz) podia conferir à vida. Por excesso de luz, em suma, o mundo perdeu seus horrores, mas também seu encanto; com isso, é preciso que Deus nos proteja do demônio do meio-dia, ou seja, do tédio e da tristeza.

Ao inventar cantos escuros e ao povoá-los de "troços" inquietantes, Zoé está se protegendo contra o demônio do meio-dia -com toda razão, pois esse é provavelmente o mais pernicioso de todos. Muito melhor se deparar com Freddy Kruger do que não achar graça no mundo.

"Filosofia do Tédio", de Lars Svenden (Zahar), é uma brilhante meditação sobre a dificuldade moderna em nos interessarmos pela vida, uma vez que ela não é mais justificada pela palavra divina ou por nossa luta heróica contra os "troços" que circulam pelas trevas. Para Svenden, contra o tédio, ainda não inventamos nada melhor do que o remédio do Romantismo: uma mistura de anestesia (drogas lícitas e ilícitas) com transgressões que deveriam provar que estamos vivendo grandes aventuras e experiências "incríveis". Se for para escolher, prefiro os esforços de Zoé para repovoar o mundo de monstros e demônios.

Mas há uma terceira via. Li, nestes dias, "O Olho da Rua", de Eliane Brum (Globo). Brum, repórter especial da revista "Época", reúne dez grandes reportagens escritas entre 2000 e 2008. Fazia tempo que um livro não me tocava tanto. Que Brum fale das parteiras do Amapá, da guerra em Roraima, dos velhos da casa São Luiz para Velhice, ou mesmo que ela acompanhe o fim da vida de uma paciente terminal, seu texto é uma verdadeira alegria - pois ele nos lembra, simplesmente, que o mundo importa, que ele vale a pena. Como ela consegue?

O tédio moderno é uma forma de arrogância: a vida é chata porque nós seríamos maiores que sua suposta trivialidade insossa; tendemos a menosprezar o cenário onde nos toca viver, como se ele fosse demasiado banal para nossas façanhas. Pois bem, o segredo de Brum é o oposto disso, é uma extraordinária humildade diante do que existe.

Quando Zoé cansar de inventar monstros para dar sentido ao mundo e à vida, vou lhe sugerir o livro de Eliane Brum.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Uma crise "cultural"



Investidores tentam prever não a economia, mas o comportamento dos outros investidores

QUASE SEMPRE, antes de eu pegar no sono, o noticiário da CNN International anuncia a abertura dos mercados asiáticos; aprendo assim, por exemplo, que Tóquio, Seul, Hong Kong e os australianos abriram em forte queda.

Escuto essa notícia como ruído de fundo, enquanto leio; no entanto, se tivesse dinheiro investido em ações aqui no Brasil, nos Estados Unidos ou na Europa, seria diferente: eu prestaria a maior atenção, mas por razões que surpreenderiam um investidor de, digamos, 50 anos atrás. Explico:

O investidor de 50 anos atrás acharia ótimo saber com tamanha prontidão o que acontece nas Bolsas dos quatro cantos do mundo e, provavelmente, ele pensaria assim: "Se os asiáticos estão liqüidando suas posições é porque algo deve ter acontecido que afeta setores-chave das economias locais; vou tentar descobrir de que se trata e quais os efeitos para as empresas nas quais eu investi meu capital".

O investidor de hoje pensaria mais ou menos assim: "Daqui três, quatro ou cinco horas, segundo o fuso horário, de Connecticut à Califórnia, milhões de americanos ligarão seu notebook enquanto tomam o primeiro café do dia. Eles saberão da queda das bolsas asiáticas e logo digitarão as ordens de venda das principais posições de suas contas. Não lhes importará saber a razão pela qual as Bolsas asiáticas caíram e se isso tem ou não implicações imediatas para seus investimentos, só lhes importará estar entre os primeiros a vender. Pois bem, vou vender antes deles".

O protótipo do investidor moderno nasceu nos anos 90: era o "day-trader", o investidor-diarista. Em geral, não se tratava de profissionais do mercado financeiro, mas de pessoas que abandonavam seus vários ofícios para se dedicar a fazer frutificar o pequeno (ou grande) capital de sua poupança. Eram chamados diaristas, porque vendiam todas suas posições e voltavam para o dinheiro líquido ao fim de cada dia.

Eles trabalhavam em lan houses especializadas, que garantiam uma ligação à internet muito rápida, e se serviam de corretoras que ofereciam cotações em tempo real e operações a um custo fixo, entre US$ 10 e US$ 20. O "day trader", ao longo do dia, observava as flutuações do mercado e pegava breves caronas nas tendências ascendentes. Por isso, ele nem precisava saber o que produziam as empresas nas quais estava "investindo", pois, de fato, ele não investia em empresa alguma, ele apenas apostava que os investidores, comprando, sustentariam um movimento de alta o tempo suficiente para ele entrar e sair, realizando assim lucros rapidíssimos (embora, claro, pequenos).

Os diaristas sumiram da praça, mas seu espírito parece dominar os investidores desde então. Eis como: o saber que o investidor hodierno mais preza não é o saber sobre o andamento da economia produtiva, sobre as fusões, o comércio, as mudanças tecnológicas, os lucros das empresas etc. Para o investidor hodierno, tudo isso importa menos do que um saber, quase psicológico, sobre o comportamento do mercado, ou seja, sobre o comportamento dos próprios investidores -dele mesmo e de seus colegas.

Como é que se chegou a essa mudança, que separou de vez o mercado fincanceiro da dita "economia real"? Uma história explica qual é e como funciona o saber preferido por nós modernos (investidores ou não).

Em algum lugar da Nova Inglaterra, os colonos, recém-chegados e instalados no alto de uma colina, receavam que seu primeiro inverno em terra americana fosse muito frio. Eles cortaram bastante madeira e, enfim, recorrereram à sabedoria dos índios, que acampavam na colina em frente à deles. Foram consultar o xamã: "Como será o inverno?". "Será muito frio", respondeu o xamã. Os colonos cortaram mais madeira, aumentando seu estoque. No fim de novembro, eles decidiram consultar novamente o xamã, que desta vez respondeu: "Será muito, muito, muito frio". Os colonos não hesitaram: serraram e empilharam madeira até não poder mais. Já em dezembro, só para garantir, eles voltaram a interrogar o xamã, que desta vez respondeu que seria o inverno mais frio de todos os tempos. Os colonos iam voltar preocupados para suas barracas e, claro, amontoar mais madeira quando um deles perguntou para o xamã: "Mas como você faz para saber como será o inverno?". "É simples", respondeu o xamã, "olho para as casas dos colonos lá na colina em frente. Se eles cortam muita madeira, é que o inverno será frio".

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Simulações perigosas


A nova lei contra a pedofilia criminaliza fantasias? Seria um precedente inquietante

COMO NOTICIOU Larissa Guimarães na Folha de 12 de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou regras mais rígidas para a punição da pedofilia. A nova formulação da lei torna mais fácil criminalizar a venda e a distribuição de pornografia infantil pela internet, assim como a posse digital (o arquivamento num computador) desse material.

Essa adaptação aos tempos era necessária e já aconteceu de maneira análoga em outros países.
Mas eis que, lendo o texto da lei, esbarrei num artigo pelo qual será punido de um a três anos de reclusão quem "simular" a participação de um menor numa cena de sexo explícito, "por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual".

Como será interpretado esse artigo? Se alguém, usando Photoshop, transformar uma fotografia pornográfica de maneira que seus atores se pareçam com crianças ou adolescentes, ele cometerá um crime? Alguém que criasse um vídeo de pornografia infantil de maneira exclusivamente digital, ou seja, sem ter que registrar cena real alguma, cometeria o mesmo crime?

O cinema já mostrou que a computação gráfica logo chegará a produzir imagens perfeitamente verossímeis: a pornografia infantil poderá dispensar o abuso efetivo de crianças e adolescentes, pois seus "atores" serão apenas seqüências digitadas num programa.

Poderíamos, apressadamente, aprovar essas interpretações da nova lei. Afinal, por mais que os vídeos pornográficos alvejados sejam invenções digitais sem referência real, resta que quem gostar deles será pedófilo e quem os produzir estará explorando e incentivando a pedofilia. Portanto, prisão neles, não é?

Pois é, cuidado: a lei moderna não pune desejos ou fantasias, mas atos. Sonhar em matar alguém que nos incomoda, à condição que a gente não tente passar ao ato, não constitui crime. Da mesma forma, por mais que o desejo do pedófilo nos repugne, o simples exercício íntimo de suas fantasias não deveria constituir crime: se alguém se masturbar, sozinho, graças a uma imagem digital cuja produção não envolveu menor, sua atividade pode ser um pecado ou uma vergonha, mas por que seria crime?

Tento ser mais claro. Pela lei moderna, o estupro é o protótipo do crime sexual: é crime agir sexualmente sem o consentimento da parceira ou do parceiro envolvidos (o caso da pedofilia é, aliás, um corolário desse princípio, pois, por definição, o menor não tem a capacidade de consentir, e o sexo, portanto, sempre lhe é "imposto").

Ora, imagens pornográficas que representam um estupro são banais, e sua produção, distribuição e posse não constituem crime. Entende-se por quê: presume-se que elas tenham sido realizadas numa simulação, com atores que concordaram em atuar naquele roteiro, e a lei não criminaliza as fantasias sexuais de quem "encena" um estupro ou de quem se excita e diverte com essa encenação.

Obviamente, o caso da pornografia infantil é diferente: um menor que atuasse numa encenação pornográfica seria vítima de abuso sexual tanto quanto se ele fosse envolvido numa cena de verdade. Mas imaginemos que a "encenação" seja produzida de maneira totalmente digital, sem ator nenhum: onde estaria o crime, senão nas fantasias de produtores e fruidores? Problema de igualdade diante da lei: por que essas fantasias constituiriam crime enquanto isso não seria o caso das fantasias de estupro?

Enfim, prefiro imaginar que o artigo de lei que citei não tenha a intenção de se aventurar no duvidoso terreno da punição de fantasias e pensamentos, mas queira apenas prever uma situação que explico a seguir. Acontece que, em tese, é impossível dizer se uma imagem ou um vídeo digitais foram gravados reproduzindo uma cena real ou sem recorrer a realidade alguma.
Ou seja, não está longe o dia em que qualquer indivíduo, preso na posse de pornografia infantil, poderá afirmar que as imagens em seu computador são apenas o registro de uma fantasia nunca atuada, mas digitalizada diretamente, como "Final Fantasy" ou "A Lenda de Beowulf". E a Justiça não terá como provar o contrário.

Uma solução possível consiste em punir produção e posse de imagens indiscriminadamente, que elas sejam devaneios digitais ou registro efetivo do abuso de um menor real. Entendo. Mas seria um precedente inquietante, em que, de fato, a lei acabaria criminalizando fantasias e pensamentos.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

"Vicky Cristina Barcelona'



O amor-paixão é uma tentação irresistível, é o protótipo da vida intensamente vivida

"VICKY Cristina Barcelona", de Woody Allen, estreou no Brasil na semana passada. Com muita leveza e muito bom humor, o filme me levou a pensar nos percalços da vida amorosa.
A história do verão em Barcelona de Vicky e Cristina é um pequeno tratado do amor-paixão: os espectadores terão o prazer (ou desprazer) de se reconhecer em algum lugar do leque de experiências amorosas que o filme apresenta -é um leque pequeno, mas do qual escapamos pouco. Sem resumir, eis umas notas:

1) Os casais que se amam de paixão, cujos parceiros parecem ser feitos um para o outro, em regra, acabam tentando se matar -com faca, revólver ou qualquer outro instrumento (cf. Juan Antonio e Maria Emilia). É porque, se o outro me completa e vice-versa, o risco é que nenhum de nós sobreviva à nossa união -ao menos, não como ente separado e distinto. Mas, por mais que seja ameaçadora, a paixão amorosa é uma tentação irresistível (cf. Cristina, Vicky, Judy) por uma razão simples: nas narrativas de nossa cultura, ela é o protótipo ideal da experiência plena, da vida intensamente vivida.

2) Por sorte ou não, o amor-paixão é raro. A maioria de nós vive relações menos "interessantes" e menos fatais -relações em que a gente se preocupa em criar os filhos, decorar a casa, ganhar um dinheiro ou jogar golfe (cf. Vicky e Doug, Judy e Mark). Não seria tão mal, salvo pelo detalhe seguinte: em geral, nesses casais "normais", ao menos um dos parceiros vive com a sensação de que sua escolha amorosa é resignada, fruto de um comodismo medroso: "O outro não é bem o que eu queria; culpa minha, que não tive a coragem de me arriscar a amar..."

Detalhe: como o amor-paixão é um ideal cultural, não é preciso ter atravessado a experiência da paixão para idealizá-la (as más línguas diriam, aliás, que é mais fácil idealizá-la sem tê-la vivido em momento algum).

3) Os que parecem não idealizar o amor-paixão passam o tempo se protegendo contra ele. Deve ser por isto que a "normalidade" amorosa pode ser insuportavelmente chata: porque ela exige a construção esforçada de defesas contra a paixão -argumentos morais e sociais, sempre mais "razoáveis" do que racionais (cf. Mark, Doug). Num casal, quem critica a doidice da paixão não parece sábio aos olhos de sua parceira ou de seu parceiro; ao contrário, ele parece, quase sempre, pequeno e um pouco covarde (cf. Vicky e Doug, Judy e Mark).

4) A paixão não é uma coisa que a gente possa encontrar saindo pelo mundo como um turista da vida (cf. Cristina). Pois não basta esbarrar na paixão; ainda é preciso encará-la quando ela se apresenta.

Pode ser que, um dia, se ela conseguir matar Juan Antonio com um tiro certeiro, Maria Emilia seja internada ou presa. Pode ser que Juan Antonio seja um sujeito amoral e, por isso, perigoso. Pode ser que Vicky seja desesperadamente normal, trocando a chance de amar por uma casa num subúrbio norte-americano (estou sendo injusto com Vicky: na verdade ela tenta...).
Mas, para mim, a mais "patológica" de todas as personagens do filme é Cristina. Sua aparente abertura para a vida ("Ela não sabia o que queria, mas sabia o que não queria", narra a voz em off) é apenas uma versão "bonita" e literária de sua "insatisfação crônica" (diagnosticada por Maria Emília, com razão). Nisso, Cristina é muito próxima da gente: ela quer e consegue brincar com a paixão, mas sem perder a ilusão da liberdade ou o sonho do que ela poderia encontrar na próxima esquina.

Por isso, sua voracidade é a do turista: tira muitas fotos pelo mundo afora, mas será que ela se deixa tocar pela vida?

5) Disse que "Vicky Cristina Barcelona" trata dos percalços da vida amorosa com leveza e bom humor; de fato, saí do cinema sorrindo, e não era o único. Mas a amiga que me acompanhava comentou: "Adorei, mas é um filme triste". "Como assim?", estranhei. Ela respondeu, com razão: "É um filme triste porque os personagens se apaixonam, vivem sentimentos fortes, mas, no fim, tudo isso não transforma ninguém. Vicky e Cristina vão embora iguais ao que elas eram no começo, sobretudo Cristina...".

Minha amiga tinha razão. O amor e a paixão não nos fazem necessariamente felizes, mas são uma festa e uma alegria porque deles podemos esperar ao menos isto: que eles nos tornem um pouco outros, que eles nos mudem. Agora, nem sempre funciona...

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Mais adultérios virtuais


Madame Bovary não sonha mais sozinha: tecla noite adentro nas salas de bate-papo da internet

A COLUNA da semana passada tratava do uso da pornografia na internet, ou melhor, apresentava os resultados de uma pesquisa segundo a qual apenas um terço das mulheres parece considerar que o uso da pornografia on-line por seu parceiro constitui uma traição. Um pressuposto da pesquisa era que os homens gostariam de pornografia muito mais do que as mulheres.

Recebi numerosos comentários, de dois tipos. Houve leitoras contestando a idéia de que a pornografia seja coisa de homem. E houve leitores e leitoras que esperavam que eu me ocupasse propriamente das relações adulterinas virtuais via Orkut, MSN etc. (as quais, de fato, despertam o ciúme e o desespero do parceiro excluído ou "traído" muito mais cruelmente do que o uso de pornografia on-line).

Concordo com as leitoras que contestam o pressuposto da pesquisa apresentada. Elas lembram que, tudo bem, talvez haja mais homens interessados em pornografia do que mulheres, mas certamente há muitas mulheres que gostam de algum tipo de pornografia.
Nossa cultura, até 40 anos atrás, preferia pensar que as mulheres não tivessem desejo sexual algum (fantasias sexuais, nem falar): melhor, portanto, desconfiar de pressupostos que parecem confinar "naturalmente" as mulheres no mundo dos bons sentimentos da mãe reprodutora (e eventualmente tolerante com as "excentricidades" do marido "tarado"). Tanto mais que, na segunda metade do século 20, os melhores textos da literatura erótica foram escritos por mulheres.

Vamos aos leitores que esperavam que eu tratasse das relações adulterinas virtuais.
Nota prévia. O uso da internet para seduzir um ou uma amante e, entre um encontro e outro, seguir dialogando com ele ou com ela não difere substancialmente do uso de cartas ou telefonemas. Ou seja, os amores e adultérios virtuais propriamente ditos são apenas as relações que se mantêm sempre na virtualidade, embora possam ser afetivamente muito relevantes para os envolvidos -talvez mais relevantes do que as relações reais com o parceiro ou a parceira com quem eles vivem.

Ora, os amores e adultérios virtuais, assim definidos, são uma prática tanto masculina quanto feminina e cada vez mais difusa. Uma leitora, Nícia Adan Bonatti, escreveu (com brilho e bom humor): "Há muitas mulheres que fogem de seu cotidiano massacrante, insosso e afetivamente estéril buscando parceiros "príncipes encantados" em suas andanças internáuticas. O feijão pode queimar na panela, mas as horas gastas na internet serão preservadas como um tesouro inexpugnável (...) É muito fácil esquecer que o parceiro de vida já foi o príncipe da vez em priscas eras, já foi o desencadeador de taquicardias homéricas antes de transformar-se no nabo de miolo mole que ronca no sofá".

Essas mulheres, ela continua, "vivem loucas aventuras virtuais, realizam desejos recônditos sem pagar preços por suas fantasias; diver- tem-se bastante, e depois lavam as mãos e recebem os maridos como se o dia tivesse sido mais um da infinita rotina".

Concordo: homens e mulheres parecem encontrar na net um instrumento novo e adequado para compensar uma insatisfação crônica com a vida que eles se permitem viver -compensar, digo, não com as quimeras solitárias de Madame Bovary, mas numa espécie de "bovarismo a dois", em que o devaneio é sustentado e, de fato, realizado pelo diálogo virtual com alguém que pode estar a milhares de quilômetros de distância e, por isso mesmo, garante facilmente a permanência do encantamento.

Conheci um casal unido, que se gostava e compartilhava com coragem as alegrias e as adversidades da vida. Um dia, cada um deles, o homem e a mulher, descobriu que o outro vivia, pela internet, um amor virtual paralelo.

O ciúme era fora de questão, visto que ambos eram traidores e traídos. Só cabia uma certa consternação: "O que aconteceu com a relação que estamos vivendo, se, para vivê-la, ambos precisamos imaginar outra?".

A leitora que citei termina seu e-mail perguntando: "O que temos, enfim, feito com nossos sonhos?". Pois é, graças à internet, conseguimos separá-los bastante radicalmente do mundo real; com isso, eles não nos ajudam a transformar nossa vida. Em compensação, devanear se tornou um prazer menos sofrido. Mme. Bovary se desesperava por não ser "outra"; nós, teclando noites a fio, podemos encontrar alguém que nos faça acreditar que somos "outros".

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Culpa branca, festa africana e socialismo



Quando o comediante faz uma piada sobre os negros, os brancos riem com 10 segundos de atraso. Esperam para ver se os negros riem antes

O COMIC STRIP Live, na segunda avenida entre as ruas 81 e 82, é um dos melhores endereços de Manhattan para quem gosta de "stand-up comedy" o espetáculo de um ator só metralhando suas piadas, sem poupar ninguém (ainda menos o público). Passaram pelo palco do Comic Strip, quando ainda não eram conhecidos, Jerry Seinfield e Eddie Murphy.

É cedo para que Barack Obama seja objeto de gozação, mas pensei no Comic Strip ao ler comentários sobre a mudança que a eleição de Obama traria às relações entre brancos e negros.
As pesquisas qualitativas mostram que, para a grande maioria da população branca, a cor da pele de Obama não foi um critério relevante.

Não por isso é o caso de decretar o fim do preconceito racial. Mas um componente do preconceito foi abalado: a culpa dos brancos, que foi, se não lavada, no mínimo seriamente aliviada pela eleição de terça-feira.

Poucos dias antes da eleição, estive no Comic Strip. Note-se que, em regra, o humor nova-iorquino ridiculariza as diferenças que convivem na cidade: irlandeses, italianos, porto-riquenhos, mexicanos e hispânicos em geral, russos, judeus ortodoxos etc., todos passam por brutais caricaturas. Paradoxalmente, a minoria que é mais poupada é a afro-americana, como se, nesse caso, a piada corresse o risco de parecer racista. É o efeito da culpa branca.

Exemplo. Um dos comediantes, naquela noite, brincou com "o atraso da risada branca": quando ele (hispânico) faz uma piada sobre os negros, os brancos riem com dez segundos de atraso. Não é que não entendam, mas eles só se autorizam a rir após verificar que os negros na platéia estão mesmo achando engraçado e rindo. Quem sabe, depois de Obama, brancos e negros possam rir ao mesmo tempo.

Na terça-feira, nos vilarejos do Quênia, havia pessoas reunidas ao redor da televisão, esperando para saber se "um queniano" seria presidente dos EUA. Pode ser que hoje essas pessoas estejam festejando como uma vitória olímpica de um atleta de sua nação. Na verdade, eles poderiam encontrar inspiração diferente na eleição de Obama. Explico.

Em outubro, no "New York Times", Nicholas Kristoff contou que o pai queniano de Barak Obama pertence à tribo Luo, uma minoria discriminada no Quênia. O colunista concluía: "A piada amarga na África Oriental é que um Luo tem mais chances de se tornar presidente nos Estados Unidos do que no Quênia".

Poucos dias antes da eleição, uma entrevistadora de televisão leu a Joe Biden (vice-presidente na chapa do Obama) uma citação famosa de Marx: "De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades"; logo ela perguntou se o candidato Obama não era marxista. Biden, quando entendeu que não se tratava de piada, caiu na gargalhada. O fato é que um dos espantalhos agitados pela campanha de McCain foi a idéia de que Obama fosse um socialista ou um comunista. Afinal, ele quer redistribuir riqueza, não quer?

A estratégia não funcionou. Os americanos, desta vez, votaram por esperança e não por medo. Além disso, impostos progressivos, ligados à renda, não incomodam a classe média dos EUA, que, ao contrário, gostaria de ver mais dinheiro destinado à melhoria de infra-estrutura e serviços públicos.

Seja como for, socialista ou não, Obama foi, de fato, eleito com o apóio dos grandes sindicatos, que ele será levado a fortalecer. Ontem, na rua 34, uma banca vendia "buttons" de Obama especificando que eles eram "Union Made in the USA", ou seja, fabricados nos EUA por trabalhadores que pertencem ao sindicato.

Ao lado dessa banca, um vendedor de DVD colocava seus heróis numa mesma coluna: Obama, Martin Luther King, Lumumba, Fidel Castro, Gandhi e Che Guevara.

Depois dizem que Obama não é um cara de esquerda...

Esta é a última crônica de Nova York. Volto para São Paulo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Os discursos

TANTO O discurso de Barack Obama quanto o de John McCain foram inspirados pela vontade de cicatrizar as feridas abertas durante a campanha e garantir a unidade da nação. Obama lembrou que será o presidente de todos, não só dos que votaram nele. Reciprocamente, McCain declarou "Obama será meu presidente" e convidou seus partidários a juntar-se a Obama no esforço de liderar o país neste tempo incerto de crise e guerras.

O verbo que McCain usou ao prometer sua ajuda ("to pledge") é o que os americanos usam para jurar fidelidade à bandeira: reconhecer o novo presidente é o que manda o interesse da nação.
Cada candidato evocou os méritos de seu concorrente. Obama homenageou o serviço heróico de McCain durante a Guerra do Vietnã, e McCain congratulou Obama por ter conseguido ser o primeiro negro a chegar à Presidência dos EUA.

Aqui McCain evocou um episódio de 1901: o então presidente Theodore Roosevelt recebeu na Casa Branca Booker T. Washington, que era, na época, o porta-voz da minoria afro-americana. Ora, em 1901, os EUA eram estritamente segregados, e Theodore Roosevelt foi criticado por admitir um negro na Casa Branca. Com isso, McCain quis lembrar o tamanho do caminho percorrido desde então e dar sua justa dimensão à vitória de Obama.

O próprio Obama evocou Martin Luther King (numa citação implícita) e contou a história de uma senhora de 106 anos que votou neste ano, embora tivesse nascido numa época em que ela não poderia votar por duas razões: por ser negra e por ser mulher. No entanto, em nenhum momento Obama deixou pensar que sua vitória fosse mais um episódio no caminho da emancipação dos negros americanos.

Essa diferença entre os dois discursos talvez seja crucial para entender o que separou os dois candidatos e fez de Obama o preferido pela imensa maioria dos jovens (de todas as etnias). McCain entendeu a vitória de Obama na perspectiva da luta de uma minoria. Mas Obama não foi o candidato de uma minoria, ele foi um candidato pós-racial, ou seja, o candidato dos que pensam que as divisões étnicas não fazem sentido. Por isso, ele seduziu os jovens.

Outro exemplo. McCain notou que a vitória de Obama devia ser motivo de orgulho para os afro-americanos. É uma declaração simpática, mas que perde de vista o essencial: a vitória de Obama foi (está sendo) motivo de orgulho para todos os americanos.

Na noite do dia 4, em Nova York, a festa durou até o amanhecer. Fora os lugares canônicos (Times Square, Harlem), por todas as ruas havia gente se abraçando -indivíduos de todas as etnias e, como se diz aqui, de todos os estilos de vida. Eles não celebravam a chegada de um negro à Presidência: eles celebravam a volta, enfim, do orgulho de ser americano.

Um comentarista da CNN constatou: "Não sei se existiu um momento na nossa história em que, como hoje, podemos sentir o orgulho do que conseguimos como nação". Bill Bennett notou que existiu, sim: foi a vitória na Segunda Guerra Mundial. O comentador observou, com razão, que desta vez foi menos trabalhoso... Bom, apesar de ter sido menos trabalhoso, como se diz no Brasil, "demorou".

Em suma, a vitória de Obama é, para McCain, um momento da emancipação dos negros. Para os eleitores de Obama (brancos, negros, etc.), ela é muito mais do que isso. De que se trata?
Para entender, é bom considerar o começo do discurso de Obama, em que ele apresenta sua vitória como a melhor resposta a todos os que podem colocar em dúvida o verdadeiro poder dos EUA, que não é o do dinheiro nem o das armas, mas o poder dos ideais americanos (democracia, oportunidades para todos, esperança...). Ou seja, a chegada de Obama à Presidência redefine a liderança dos Estados Unidos como liderança ideal. Era, obviamente, o que a maioria dos americanos queria.

Mais uma observação. Ao longo da campanha, Barack Obama mostrou nervos de aço; ele nunca perdeu seu "cool". No discurso de vitória, Obama reservou uma frase aos que "querem despedaçar o mundo": "we will defeat you", nós derrotaremos vocês. Seu tom absolutamente calmo, quase um grau zero da oratória, me fez pensar que é melhor não brincar com Obama.
Enfim, pergunta: os EUA acordaram diferentes, na quarta-feira depois da eleição? Um pouco. Na esquina da 34 com a oitava, um senhor negro pedia esmola tocando um pequeno teclado. Alguém deixou cair um dólar no copo de papel previsto para isso. O velho músico agradeceu. O passeante parou e replicou: "Sou eu que lhe agradeço por ter me feito sorrir". Nunca vi nada igual em Nova York.

Claro, é um estado de graça que não vai durar muito (já vimos isso nos dias depois do 11 de Setembro). Mas algo talvez permaneça: o sentimento de uma comunidade que está acima de seus fragmentos. Não seria pouca coisa.

Adultérios na internet



Quando, num casal, um dos dois gosta de pornografia, existe razão para se sentir traído?

MUITAS MULHERES se queixam de que o computador se tornou seu rival: os maridos passam horas, sobretudo noturnas, na internet, atrás de conteúdo erótico e, quem sabe, de encontros sexuais.

Algumas, mais atrevidas, conseguem descobrir a senha de usuário dos maridos e se familiarizam com o uso de Explorer, Safari, Firefox etc. para monitorar o "histórico" das navegações noturnas de seu parceiro. Às vezes, elas conseguem até invadir o MSN e ler outro histórico, mais incômodo: o das conversas passadas do usuário. Difícil dizer, aliás, se os maridos se esquecem acidentalmente de apagar os rastros de sua navegação e de suas conversas ou se eles os deixam de propósito.

Talvez queiram ser descobertos para acabar de vez com os subterfúgios de sua dupla vida e forçar assim uma separação que lhes permitirá, enfim, ficar no computador livremente, noite e dia.

Ou talvez eles gostem de alimentar a desconfiança de sua parceira: ao se sentirem vigiados, a um passo de serem descobertos, eles satisfazem a nostalgia de uma infância "feliz", em que "se esqueciam" de trancar a porta do banheiro, espreitando e receando a chegada da mãe.
Seja como for, o uso erótico da internet pelos maridos está se tornando argumento de brigas e divórcios.

Nesse clima, li com especial interesse o artigo de Ross Douthat, "Is Pornography Adultery?" (será que a pornografia constitui adultério?), no número de outubro 2008 do "Atlantic". O texto é especialmente instrutivo porque Douthat deixa inteiramente de lado o uso da internet para procurar encontros e aventuras "reais".

A questão que ele levanta é a seguinte: quando, num casal, um dos dois tem o hábito (geralmente, secreto) de assistir a material pornográfico (prática facilitada imensamente pela net), será que o outro se sente traído? E será que é certo sentir-se traído nesse caso?
Uma pesquisa recente entre estudantes universitários dos EUA mostra que 70% das mulheres nunca entraram num site pornô, enquanto a mesma coisa vale só para 14% dos homens. Ou seja, os homens procuram pornografia na net muito mais do que as mulheres. Essa constatação trivial confirma outra, também trivial: com muito mais freqüência do que as mulheres, os homens alimentam seu desejo com fantasias sexuais conscientes e detalhadas, uma espécie de cinema erótico de bolso. Se eles se interessam pela pornografia é porque, com sorte e dedicação, em algum canto do repertório, esperam encontrar a prova de que suas fantasias podem ser realizadas.

Na verdade, um casal funciona quando cada um consegue fazer parte das fantasias do outro. Mas Douthat argumenta de maneira um pouco diferente. Ele sugere primeiro que as mulheres poderiam tolerar com condescendência o uso da pornografia por seus parceiros, numa atitude parecida com a de pais liberais com a masturbação dos filhos pré-adolescentes. E não seria o caso, aliás, de sentir ciúmes: essa espécie de ginástica sexual masculina, ao contrário, pode alimentar o desejo do homem pela sua companheira -a qual se beneficiaria, portanto, do inócuo passatempo do marido.

Mas, Douthat continua, as coisas não são tão simples assim. Imaginemos um marido que, voltando do trabalho, pare num bar para solteiros e festeje o fim do dia sentado a um balcão sobre o qual se agitam dançarinas seminuas; a mulher deveria se sentir traída? Talvez não.
E se o mesmo marido pagar uma prostituta para vê-la transar com outro homem? Será que a coisa não complicaria? Ora, esse segundo caso não é mais próximo do uso da pornografia?
Seja como for, segundo uma pesquisa de 2003, de Bridges, Bergner & McInnis, "Romantic partner's use of pornography: its significance for women", (uso da pornografia pelo parceiro amoroso, seu significado para as mulheres, "Journal of Sex and Marital Therapy", vol. 29,1), apenas um terço das mulheres vivenciaria o uso da pornografia por seu parceiro como uma traição.

Um terço parece pouco, mas talvez a pergunta tenha sido mal colocada. Talvez diante do uso masculino da pornografia, as mulheres não se sintam tanto traídas quanto abandonadas.
A mulher que vai para cama sozinha (enquanto o marido, noite adentro, fica na sala teclando em prazeres virtuais) sofre sobretudo de exclusão, sofre por constatar que ela não faz parte dos sonhos de seu parceiro -apenas da realidade da qual ele tenta fugir.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Dormindo com inimigos?



A paixão de Lindemberg era um argumento para que atiradores de elite apertassem o gatilho

COMO MUITOS pelo Brasil afora, assisti ao extenuante drama de Eloá Pimentel, 15, seqüestrada durante cem horas e, no fim, morta pelo ex-namorado, Lindemberg Alves Fernandes, 22, em Santo André, São Paulo.

Como muitos, achei absurda a decisão das autoridades, durante as negociações, de mandar de volta para o cativeiro a amiga de Eloá, Nayara -que por sorte se salvou, embora baleada no rosto. E descobri, consternado, que o Grupo de Ações Táticas Especiais não dispõe de microcâmeras que funcionem nem de escadas que alcancem uma janela do segundo andar.

Fora isso, uma frase cativou minha atenção. No sábado passado, Ana Cristina Pimentel, a mãe de Eloá, declarou a Britto Jr. (TV Record) que "a polícia teve muito tempo para matar" Lindemberg e que os policiais deveriam ter atirado nele muito antes do desfecho.

Lembrei-me de que alguém da PM -talvez o próprio coronel Félix (não consegui reencontrar a reportagem)- afirmara que os atiradores de elite tiveram várias ocasiões para matar o seqüestrador, mas a ordem de atirar não foi dada por se tratar de um seqüestro motivado por razões, digamos assim, não torpes.

Nada de assalto, extorsão etc. Lindemberg e Eloá tinham sido namorados, e era na exaltação de uma paixão amorosa (por doentia que fosse) que Lindemberg estava cometendo aquela loucura e ameaçando acabar com Eloá e, depois disso, matar-se.

Aparentemente, a PM pensou que os sentimentos de Lindemberg tornassem menos provável que ele passasse das ameaças aos atos.

Curiosamente, eu pensava exatamente o contrário: a paixão de Lindemberg por Eloá me parecia aumentar as possibilidades de um desfecho fatal e constituir um argumento para que os atiradores de elite apertassem o gatilho. Por quê?

Não sei se existem estatísticas comparando o desenlace dos seqüestros perpetrados por razões torpes ao dos que são motivados pelos malogros do amor (separações não aceitas, ciúmes, despeito da rejeição e por aí vai).

Mas imagine, por um instante, que Lindemberg fosse um assaltante qualquer: por acaso, ele entrou no apartamento dos Pimentel para roubar e aí ficou, com duas reféns, encurralado pela polícia. Sem dúvida, ele ameaçaria matar as adolescentes para negociar uma chance de fuga. No entanto, quando os policiais arrombassem a porta, sua maior preocupação seria a de salvar a pele; ele poderia instintivamente reagir atirando nos invasores (e seria crivado de balas) ou abrigar-se atrás de uma das adolescentes, usando-a como escudo numa última tentativa de defesa. Mas por que mataria as reféns? Para ser morto a tiros na hora? Ou, se não fosse morto, para aumentar o número de anos que passaria na cadeia?

Claro, as ações de um criminoso acuado não são necessariamente racionais. No paroxismo dos breves segundos da invasão, um seqüestrador qualquer poderia atirar em suas reféns, por exemplo, para se vingar da "traição" dos negociadores que, certamente, prometeram-lhe salvação e liberdade. Mas é apenas uma possibilidade, enquanto Lindemberg, como ele havia dito explicitamente à mãe de Eloá, viera com o propósito de "fazer uma besteira": matar Eloá e matar-se (quem sabe, um jeito de ficar com sua amada para sempre). Para ele, a urgência, na hora da invasão, seria (e foi mesmo) a de levar a cabo sua tarefa. Faltou-lhe apenas a coragem (ou o tempo) de se dar um tiro.

Em suma, paradoxo: justamente porque o seqüestro não tinha razões "torpes", os atiradores da PM deveriam ter sido liberados para atirar.

A exposição midiática do caso fez que o pai de Eloá, Everaldo Pereira dos Santos, fosse reconhecido pela polícia de Alagoas como um foragido, suspeito de vários crimes, entre os quais o de ter matado a ex-mulher, em 1992. Por intermédio de seu advogado, Santos declarou: "Jamais cometeria um crime bárbaro contra uma mulher que tanto amei". Faz sentido, não? E a PM paulistana pensou parecido: Lindemberg não mataria Eloá, que ele tanto amava.

A verdadeira paixão amorosa não é exatamente um "bom sentimento". O apaixonado acredita no objeto de amor (que, de fato, ele inventa) assim como, nos transtornos mais graves, um indivíduo acredita em suas alucinações. Com uma diferença: contrariamente ao alucinado, o apaixonado não consegue renunciar a uma visão que é para ele, às vezes, a prova única e indiscutível de que ele não está só no mundo e de que a vida e a morte fazem sentido.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A sexualidade de quem governa



As fantasias que sustentam o desejo nos definem mais do que o gênero do parceiro

SERÁ QUE que a vida sexual de quem se candidata a governar é relevante para os eleitores? Há duas "escolas" de pensamento: a francesa e a dos EUA.

Para os franceses, em princípio, a vida amorosa e sexual dos governantes não tem relação com as qualidades morais que importam na vida pública. Portanto, é raro que, no debate político, apareçam "detalhes" privados (amantes, filhos fora do casamento etc.).

Nos EUA, ao contrário, a intimidade de governantes e candidatos é vasculhada. Talvez os norte-americanos sejam simplesmente mais moralistas do que os franceses. Ou talvez eles acreditem que uma vida privada libertina (ou não conforme a regra) prometa uma condução desregrada da coisa pública. Algo assim: quem não resiste à paixão (nem para compor o cartão-postal da campanha) colocará sua "tara" acima de seu dever.

É um enigma: os norte-americanos prezam a liberdade de cada um viver como ele bem entende, mas pedem que quem governa seja um exemplo de conformismo. E, em regra, o conformismo de quem governa (sobretudo se for só aparente) transforma-se em exigência de conformidade para todos.

O Brasil é outro enigma: a relevância política da vida amorosa e sexual dos governantes parece mínima, como se o público e o privado fossem domínios claramente distintos. Por outro lado, a esfera pública é brutalmente parasitada pelos interesses privados (corrupção, clientelismo).
Seja como for, nessa história, o que mais me impressiona é a ingenuidade com a qual é composto o "perfil" sexual e amoroso de candidatos e governantes. Nas campanhas eleitorais dos EUA, por exemplo, os candidatos levam consigo mulher e filhos; supõe-se que essa exibição valha como um atestado de "normalidade", enquanto, no máximo, ela indica qual é orientação sexual do candidato (e olhe lá) e qual sua aptidão para multiplicar-se.

Ora, se nossa vida sexual e amorosa diz algo sobre quem somos, não é graças à nossa orientação ou à nossa capacidade de procriar. Do lado amoroso, seria mais significativo considerar qual é o respeito pela singularidade do parceiro, qual a virulência da idealização ou do ciúme, qual a parte de narcisismo etc. Do lado sexual, muito mais que o gênero do parceiro escolhido (ou exibido), o que define um indivíduo são as fantasias (implícitas ou explícitas, realizadas ou não) que sustentam seu desejo.

Ou seja, se quisesse conhecer a vida sexual e amorosa de um candidato, precisaria saber não tanto quem ele ama, mas qual é seu jeito de amar, e não tanto com quem, mas COMO ele "transa" - ou seja, o que o excita, quais pensamentos, quais situações, quais palavras. Também me perguntaria se o candidato tem mesmo uma vida sexual (com que freqüência e intensidade) e se ele aceita sua própria sexualidade ou a vive com nojo ou asco.

Tudo isso, caso eu quisesse saber um mínimo sobre a vida amorosa e sexual de um candidato. Mas será que isso me seria útil na hora de votar? E de que forma?

Michel Foucault talvez seja o pensador que melhor desmascarou e contestou os mecanismos do poder moderno (isso, apesar de sua histórica burrada ao avaliar positivamente o regime dos aiatolás no Irã). Como ele mesmo revelava, sua sexualidade se alimentava em fantasias e práticas sadomasoquistas. Pergunta: sua perspicácia e seu engajamento libertários se deram apesar de suas fantasias sexuais ou por causa delas? Não sei.

A pergunta não é urgente: infelizmente, no estado atual de nossa sociedade, é improvável que candidatos e candidatas a cargos de governo falem publicamente do que importa em sua vida sexual e amorosa.

Fico apenas com esta idéia: em geral, um governante que aceita e vive suas próprias fantasias é, para mim, preferível a outro que as reprime, pois a falta de indulgência consigo mesmo promete rigidez hipócrita para com os outros. Também, o exercício da sexualidade introduz em todas as fantasias uma descontinuidade: a "brincadeira" termina quando acaba a relação sexual. Voltando ao exemplo de Foucault, quem goza sexualmente com os apetrechos do sadomasoquismo dificilmente consegue não achar risível a face sisuda do poder.

Mais um ponto: salvo ilegalidade, em matéria de sexo, minha regra geral é que só o interessado tem o direito de falar. A voz de um terceiro sempre ressoa como uma denúncia que faz apelo ao preconceito -ou seja, certamente não ao que tem de melhor em nós.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Marta com McCain

McCain e Marta, para desacreditar o candidato oposto, contam com nossos preconceitos

AS CAMPANHAS ELEITORAIS são facilmente sórdidas.

Claro, os candidatos mentem inchando seus feitos, omitindo suas inércias, atribuindo-se realizações que são de outros ou dos predecessores. Mas isso dá para agüentar, é quase normal.

Muito mais humilhante (para a gente) é quando as campanhas fazem apelo ao que há de pior em nós, ou seja, quando, na tentativa de desacreditar o candidato adversário, elas apostam em nossos preconceitos. Nesse caso, as campanhas supõem (com razão) que estejamos sempre prontos a transformar tal candidato em cabide de sentimentos e desejos que são nossos, mas dos quais nos envergonhamos.

Funciona assim. Digamos que eu sou ávido e venal e não gosto disso; prefiro me imaginar desinteressado e generoso. Como tirar vantagem dessa minha contradição?

O jeito ideal de me manipular não é denunciar um candidato porque ele se mostrou, em tal ocasião, interesseiro e cobiçoso. O método direto é o menos eficiente: ele permite, afinal, que a gente se interesse pelos fatos, verifique, concorde ou discorde.

A melhor maneira de manipular passa por dois tempos: 1) evocar um fato do qual são silenciadas a causa e as circunstâncias, 2) levantar uma pergunta quanto mais genérica possível, de modo que o ouvinte projete suas próprias tendências envergonhadas no candidato atacado e ele, o ouvinte, seja, assim, o único responsável pela calúnia.

Um exemplo? 1) Os judeus são quase todos comerciantes, 2) pergunta genérica: o que eles "realmente" querem da gente? A propaganda anti-semita nazista acrescentava, para quem fosse burro mesmo, desenhos de garras aduncas surgindo da sarjeta, mas não era necessário. Detalhe silenciado: os judeus eram comerciantes porque, por exemplo, não lhes era permitido comprar terra ou exercer profissão liberal que atendesse à população em geral.

Na fase dois da manipulação (a pergunta), é crucial que algo nos sugira que houve a intenção de esconder uma falha, que deve ser revelada. Em "O que eles "realmente" querem da gente?", o advérbio instala em nós a suspeita de que estávamos sendo enganados. Agora, o véu será levantado. O problema é que, como nada foi dito explicitamente, será levantado não por uma denúncia, mas pela atribuição ao acusado de qualquer uma das tendências que mais receamos em nós mesmos.

Esse método básico de manipulação aparece de maneira idêntica na última fase da campanha presidencial dos EUA e no início do segundo turno das eleições para a Prefeitura de São Paulo.

A campanha de John McCain 1) encarregou a candidata a vice de evocar fatos "sugestivos" sem explicitar as circunstâncias (por exemplo, Barack Obama encontrou o ex-ativista e terrorista William Ayers -de fato, Ayers era tudo isso nos anos 1960, mas hoje é professor de pedagogia na Universidade de Chicago e se ocupa de programas sociais educativos); 2) logo, perguntou: "Quem é o "verdadeiro" Obama?".

A campanha de Marta Suplicy apenas inverteu a ordem; criou um comercial que começa com "Você sabe "mesmo" quem é o Kassab?" e termina com a pergunta: "Sabe se ele é casado? Tem filhos?".

É óbvio que as prisões do país estão cheias de indivíduos casados e com filhos (o estado civil não é garantia de nada). A pergunta só serve para que o eleitor médio pense em Kassab como diferente dele: "Não é casado? Então, tem uma vida diferente da minha". Essa pensada dá força à interrogação inicial: "Você sabe "mesmo" quem é o Kassab?". Não, não sei, visto que ele é diferente de mim. O que ele está me escondendo?

A Folha de 13 de outubro relata o seguinte: a reportagem "perguntou a Marta se a propaganda não era contraditória com a sua biografia" (Marta Suplicy foi uma campeã do direito à privacidade). E Marta respondeu: "O que você está insinuando?". Mais uma manipulação: "Ninguém disse nada, o comercial só pergunta, é você que procura pêlo no ovo".

As perguntas das campanhas de Marta e de McCain talvez funcionem com eleitores desavisados: eles imaginarão que Kassab e Obama sejam os perigosos porta-vozes de tendências obscuras que eles (os ditos eleitores) receiam, antes de mais nada, dentro deles mesmos.

Mas, para a maioria, menos desavisada do que parece, essas perguntas assinalam que as campanhas de Marta e de McCain estão dispostas a uma boa dose de indignidade moral para se manterem em vida.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Pensamentos eleitorais



Temos uma relação doente com a verdade: oscilamos entre o ceticismo e a paixão

NA NOITE das eleições, os comitês dos vitoriosos oferecem festas. Por sorte dos próprios candidatos, essas festas acontecem depois de a gente ter votado. Por que "por sorte"? Porque deve haver vários eleitores que, como eu, à vista do triunfalismo dos partidários exultantes, sentem vontade de votar por outro candidato.

Não ficou claro? Explico. Na noite de domingo passado, na primeira festa que a TV nos mostrou, eis que um grupo de mulheres possuídas pulavam e gritavam "Ganhou! Ganhou! Ganhou!". Agüentei. Logo, alguém enfiou a cara na câmara e afirmou: "Deus está conosco". Por que não diretamente em alemão, "Gott mit uns", como estava escrito na fivela dos cintos dos soldados da Wehrmacht na Segunda Guerra Mundial? Deve ser um ranço religioso, mas, para mim, a frase "legal" é: "Que Deus esteja com vocês".

Enfim, haja paciência. Mudei de canal. Mas o episódio me ajudou a pensar. Em geral prefiro as pessoas que têm o bom gosto de serem humildes e pensativas sobretudo na vitória. Mas não é só isso.

Parece que, cada vez mais, o que faz a diferença entre os candidatos não são suas propostas (freqüentemente próximas), mas sua figura e seu "caráter". Pois bem, se esse for o critério, o melhor candidato, para mim, será aquele que NÃO parece estar absolutamente convencido de ser a melhor escolha. Inversamente, o pior é aquele que se acha insubstituível, superior aos outros. Não devo ser o único que pensa assim.

No primeiro debate entre os candidatos nas eleições presidenciais dos EUA, quando John McCain reiterou que ele é "o cara" (aquele que tem caráter, fibra e experiência para ser presidente), logo naquela altura, despencou unanimemente a aprovação dos espectadores reunidos num grupo de foco pela CNN. Ou seja, ninguém agüenta.

Na mesma linha, entendo que, nas eleições municipais brasileiras, os candidatos a vereador disponham de um fragmento muito curto do horário eleitoral. Mas o resultado é obsceno: a maioria só consegue lançar um apelo abstrato e patético -"Votem em mim, gostem de mim, confiem em mim" (mas por quê?)- e exibir o traço grotesco que os tornaria únicos, extraordinários (a barba de Bin Laden ou de Enéas, o cabelo máquina dois de Obama etc.).
Talvez essas vinhetas sejam a parte mais engraçada do horário eleitoral, mas é um riso que pode tornar risível o processo inteiro.

Voltemos ao meu candidato ideal, aquele que não estaria certo de ser o melhor nem o único. Alguém perguntará: então, por que razão ele se candidataria?

Essa questão surge porque temos uma relação doente com a verdade: oscilamos entre um ceticismo quase cínico (cada um tem a sua verdade, portanto todas as verdades se valem) e uma paixão missionária (nós temos a única verdade; os outros, que pensam diferente, devem ser corrigidos, para o próprio bem deles). Ou seja, a verdade é uma só (a nossa) ou, então, não tem verdade alguma.

É mais uma versão da patologia narcisista básica: eu sou o único, o eleito, ou, então, não sou ninguém. Assim como é difícil conseguir viver sendo "apenas" um entre outros, também é difícil considerar que a nossa verdade é uma entre outras, mas não por isso deixa de ser uma verdade. O diálogo, aliás, não é possível nem entre os cínicos nem entre os enfatuados -só é possível entre os que conseguem acreditar numa verdade que conviva com outras. Exemplo.

Nos EUA, desde 1973, o aborto, como decisão autônoma da mulher, é permitido sob a condição de que o feto não seja viável fora do corpo da mãe. Entende-se: o feto viável fora do ventre materno é um cidadão, e o aborto passa a ser um assassinato.

Ora, consideremos os candidatos à vice-presidência dos EUA. Tanto Sarah Palin (republicana) quanto Joe Biden (democrata) são cristãos. Para ambos, a vida começa no momento da concepção; para ambos, o embrião fecundado já é um sujeito e tem alma.

Palin afirma que ela tentaria reverter a lei atual, autorizando os Estados a proibirem o aborto. Biden afirma que, apesar de sua convicção, a lei atual lhe parece ser um compromisso aceitável, numa sociedade em que convivem pessoas que pensam como ele e outras que pensam diferente. Moral da história, graças a Biden. Acreditar na verdade do que a gente pensa não implica querer impor nossas idéias a todos com ze- lo missionário. E aceitar que haja mais de uma verdade não significa ser cínico.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Aritmética da crise



Um responsável pela crise: o pensamento positivo, triunfante na cultura americana

EM 1994 , nos EUA, os juros dos empréstimos bancários eram baixos. Em Nova York, os Jones, um casal de professores, decidiram comprar um apartamento que valia US$ 300 mil. Graças a uma herança, eles dispunham de um aporte inicial de US$ 100 mil e conseguiram um empréstimo hipotecário de US$ 200 mil a juros fixos; a mensalidade, que pagariam por 30 anos, era compatível com seus salários.


Em 1996, o apartamento dos Jones, comprado por US$ 300 mil, já estava valendo US$ 450 mil, e os bancos competiam para refinanciá-lo. Os Jones contrataram novo empréstimo hipotecário de US$ 350 mil; com isso, pagaram o saldo da hipoteca anterior (quase US$ 200 mil) e ficaram com US$ 150 mil líquidos, para eles.


A bolsa não parava de subir, e os Jones investiram seus 150 mil (sobre os quais pagavam juros de 6%) em fundos de ações (com retorno médio de 16% ao ano). Nada mal.


Dois anos mais tarde, o apartamento valia US$ 600 mil. Os Jones pediram a seu banco uma linha de crédito garantida por uma segunda hipoteca sobre o imóvel: mais US$ 150 mil, que eles investiram nos mesmos fundos de ações.


Nessa altura, além do apartamento (que valia 600 mil, mas com duas hipotecas, de 350 e 150 mil), os Jones possuíam um capital investido de US$ 300 mil. Sucesso, hein?


Preocupados em não perder o trem da alegria, convencidos de que não há bem-estar sem crescimento contínuo e entusiastas da internet, os Jones venderam seus fundos e passaram a negociar ações diretamente numa corretora on-line, com bons resultados: naqueles anos, era difícil errar. Preferiam as ações de empresas das novas tecnologias, que prometiam lucros rápidos. Seus investimentos serviam como garantia para eles alavancarem dinheiro para mais investimentos, o que multiplicava o retorno (e também os riscos, mas os Jones se sentiam confiantes: só conheciam céus azuis -longo período de juros baixos, aumento vertiginoso do preço dos imóveis e subida contínua das bolsas).


Em março de 2000, no desastre das ações de tecnologia, alavancados além da conta, os Jones tiveram que vender na pior baixa. Perderam metade de seu capital. Mas, nesta altura, seu imóvel valia US$ 800 mil; eles ampliaram a linha de crédito e voltaram para a bolsa com toda força.


No 11 de Setembro de 2001, novo desastre. Os Jones ficaram com quase nada. Sobrava-lhes seu imóvel. Problema: entre 2000 e 2001, pela queda nas bolsas, US$ 4 trilhões sumiram das contas dos americanos; o preço dos imóveis estava fadado a baixar. No fim de 2007, o apartamento dos Jones, hipotecado por US$ 500 mil, valia US$ 450 mil. Entregar a casa para o banco credor se tornava um bom negócio. Essa é a história de uma hipoteca de primeira linha. A das hipotecas de segunda linha ("subprime") é mais simples.


Nos anos 90, os Smiths não tinham renda para pagar as mensalidades de um empréstimo. Para que os menos solventes aproveitassem a "festa" imobiliária, os bancos inventaram um tipo de empréstimo com juros bem altos, mas que seriam cobrados só a partir do terceiro ano. Ou seja, antes de dois anos, os Smiths venderiam seu imóvel (cujo valor teria aumentado de, digamos, 30%), reembolsariam o empréstimo do banco e ficariam com o tal 30%, um pequeno patrimônio. Tudo certo -à condição que o preço dos imóveis não parasse de subir.


Durante esse tempo, os bancos, assim como seus clientes, também apostaram no eterno "boom" dos imóveis e transformaram os débitos hipotecários dos Jones e dos Smiths em títulos negociáveis, lastro para alavancar mais dinheiro etc.


O que foi? Cobiça dos Jones e dos Smiths? Ganância de executivos preocupados só com seu bônus de Natal? Uma grande jornalista americana, Barbara Ehrenreich, no "New York Times" de 23 de setembro, aponta para um responsável menos óbvio: o pensamento positivo, triunfante na cultura americana das últimas décadas.


Para Ehrenreich, o problema é que, há anos, "tropas de pastores de superigrejas e um fluxo infinito de best-sellers de auto-ajuda" juram que, para conseguir o que a gente quer, é suficiente "acreditar firme": deseje ardentemente o objeto de sua ambição, e eis que o mundo e Deus responderão a seu pedido.


As estantes das livrarias de aeroporto mandam cada viajante (sobretudo se for um executivo) ser loucamente otimista e confiante. Em seus sites, os conferencistas motivacionais ainda listam orgulhosamente, entre seus clientes importantes, Lehman Brothers e Merril Lynch...

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O comandante McCain



O líder ideal de hoje seria um aviador caído que provou sua fibra em anos de detenção?

NOS EUA , a um mês e meio das eleições presidenciais, não faltam os indecisos. Os dois candidatos estão empatados, mas, por exemplo, uma maioria de eleitores parece pensar que Barack Obama, o democrata, lidaria com as dificuldades econômicas melhor do que John McCain, o republicano. Ou seja, há eleitores de McCain que, se dessem prioridade à economia, escolheriam Obama. Não é de estranhar: McCain sempre se disse pouco versado em economia e, durante a crise financeira da semana passada, produziu uma pirotecnia de declarações inflamadas e incoerentes.
Mais um exemplo. Nos EUA, o presidente é comandante supremo das Forças Armadas. Uma maioria de eleitores pensa que McCain seria um melhor comandante do que Obama. Ou seja, há eleitores de Obama que, se dessem prioridade às guerras em curso, escolheriam McCain.

Também, à primeira vista, não é de estranhar: McCain pertence a uma dinastia de militares, formou-se na academia naval de Annapolis e, assim que começou a Guerra do Vietnã, foi voluntário, servindo como piloto baseado num porta-aviões. Recebeu várias condecorações, entre elas a Purple Heart (coração purpúreo - reservada aos gravemente feridos em combate). Que mais os americanos poderiam querer no meio de uma guerra?

Pois é, a coisa é menos óbvia do que parece. Que o presidente comande as Forças Armadas não implica que ele deva ser um militar. Com raras exceções (Washington depois da Guerra de Independência, Eisenhower depois da Segunda Guerra Mundial), os presidentes norte-americanos não foram escolhidos por serem grandes comandantes. Abraham Lincoln, que liderou o Norte e salvou a unidade do país durante a Guerra de Secessão, não tinha experiência militar.

Franklin D. Roosevelt, vitorioso na Segunda Guerra Mundial, embora tivesse sido secretário-assistente da Marinha na presidência de Woodrow Wilson, nunca fora militar. E entende-se que as qualidades de um bom soldado não sejam as mesmas esperadas num bom presidente e comandante supremo: a decisão de entrar em guerra e a conduta de um conflito pedem determinação, coragem etc., mas, antes disso, pedem ponderação.

Então, qual pode ser, para os eleitores dos EUA, o apelo de McCain como comandante supremo? Consideremos seu currículo militar, que não é tanto uma experiência de liderança quanto uma longa provação que testou sua resiliência.

Na 23ª missão de McCain, em 67, seu avião foi abatido sobre Hanói. Na queda, ele quebrou os dois braços e uma perna. Os norte-vietnamitas descobriram que ele era filho do almirante que comandava as operações do Pacífico e propuseram sua liberação antecipada. Torturado, mantido em isolamento, McCain nunca aceitou a proposta e decidiu ficar preso, com os outros, até o armistício final, em 1973.

A história de McCain comanda respeito. Mas por que, para muitos americanos, ela o qualificaria, LOGO HOJE, como comandante supremo? Por que o comandante ideal de hoje não é um herói vitorioso, mas um aviador caído que provou sua fibra em anos de detenção?

Pois é, a Guerra do Iraque está longe de fazer a unanimidade; aos olhos de uma boa parte da população americana, os erros (ou as invenções) que motivaram a guerra, assim como os métodos de detenção e tortura usados em Guantánamo e Abu Ghraib, corroem a autoridade moral dos EUA. Embora as baixas sejam muito menores, a impopularidade da Guerra do Iraque é parecida com a da Guerra do Vietnã no fim dos anos 1960 e começo dos 1970. E, como no caso do Vietnã, paira uma incerteza quanto ao desfecho do conflito.

Ora, McCain não precisou estar numa guerra justa nem numa guerra vitoriosa: conseguiu ser herói numa guerra envergonhada, como foi a do Vietnã para a metade da população americana da época e como está sendo a do Iraque. Sua figura resgata a possibilidade de manter retidão e autoridade moral mesmo numa derrota e num conflito duvidoso.

Certo, entres os que preferem McCain, há muitos para quem se trata apenas de escolher um militar, que atire sem piscar. Mas também deve haver muitos para quem (talvez inconscientemente) McCain é o símbolo da honra que pode ser salva nas piores condições.
Isso sem contar os que elegeriam McCain para lavar a culpa coletiva, como um desagravo, um jeito de compensar os soldados que, por duas vezes, tiveram que combater sem que soubessem bem por quê.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

"Ensaio sobre a Cegueira"



Somos capazes de tudo: o apocalipse nos testa e nos revela a nós mesmos e ao mundo

GOSTO DOS romances e dos filmes apocalípticos, ou seja, das histórias em que algum tipo de fim do mundo (guerra nuclear, invasão extraterrestre, epidemia etc.) nos força a encarar uma versão laica e íntima do Juízo Final. Nessa versão, Deus não avalia nosso passado, mas, enquanto o mundo desaba, nosso desempenho mostra quem somos realmente. No desamparo, quando o tecido social se esfarela e as normas perdem força e valor, conhecemos, enfim, nosso estofo "verdadeiro". Somos capazes do melhor ou do pior: o apocalipse nos testa e nos revela.

O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido "O Último Homem" (ed. Landmark), de Mary Shelley, que é também a autora de "Frankenstein". De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada no bricabraque de um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre - para o bem ou para o mal.

No romance de Mary Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como na "Peste", de Camus, e como no "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.

A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria, sutil e forte. Por exemplo, o filme banha numa luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como foi dito e repetido) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes - até que as sombras e os brilhos sejam revelados na "hora do vamos ver", que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.

Depois de assistir ao filme, li algumas das críticas que ele recebeu em Cannes. A nota de Manohla Dargis, no "New York Times" de 16 de maio, por exemplo, é paradoxal: Dargis acusa o filme de ser uma Alegoria com "A" maiúscula, em que, aos personagens, faltaria espessura. Certo, os personagens de "Ensaio sobre a Cegueira" quase não têm história prévia, assim como a cidade em que os fatos acontecem (uma mistura de São Paulo com Toronto) é uma cidade moderna qualquer, cujas particularidades não contam. Essa, justamente, é a beleza do gênero: o surgimento quase abstrato de uma situação extrema, em que se trata de escolher e agir a partir de nada. O passado, o lugar não contam: os personagens são definidos por suas escolhas aqui e agora.

Dargis também se queixa da oposição que lhe parece excessiva, no filme, entre "os bons" e "os ruins", ou seja, entre os que, na cegueira, descobrem e aprimoram sua humanidade e os que a perdem. É uma queixa curiosa, pois, em quase todas as narrativas apocalípticas, a contraposição de retidão e bestialidade é o sinal de uma liberdade quase absoluta, angustiante: o fim do mundo é um bívio sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança. A oposição caricata dos bons e dos ruins expressa a incerteza do espectador, do leitor e do autor: "Você, se, por uma misteriosa epidemia, o mundo ficar cego, se o reino da lei acabar e começar a idade da luta pela sobrevivência, de que lado estará? Do lado dos que inventarão novas formas de abusos ou dos que descobrirão novas formas de respeito e de vida comum? Uma vez perdida a visão, o que você enxergará no seu vizinho: mais uma mulher para estuprar e um otário para explorar ou um irmão, perdido que nem você?"

No "Ensaio sobre a Cegueira" (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.

São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua "honra". São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).

Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

"Linha de Passe"



A invisibilidade é de duas mãos: insufilme nos vidros dos carros e nas viseiras dos capacetes

DESDE QUE assisti a "Linha de Passe", de Walter Salles e Daniela Thomas, os personagens do filme crescem na minha memória e parecem cada vez mais familiares, mais próximos de mim.
É curioso, pois eles habitam um mundo distante do meu. "Linha de Passe" conta a história de quatro irmãos (de pais diferentes), que vivem com a mãe (que espera um quinto filho), na Cidade Líder, zona leste de São Paulo. A mãe é empregada doméstica (a maravilhosa Sandra Corveloni, prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes). Um dos irmãos é frentista e evangélico. Outro, de peneira em peneira, sonha em se tornar jogador de futebol. Outro é motoboy e já tem um filho com uma menina que ele visita de vez em quando. O último seria estudante se não estivesse sempre viajando de ônibus, à procura do pai, que é ou foi motorista de uma viação paulistana.

Conhecendo esse resumo (e sem ter visto o filme), um colega, que tem um certo preconceito contra o cinema brasileiro, perguntou: "Mas por que nunca fazem um filme sobre pessoas que nem a gente? Motoboy, frentista, empregada doméstica, futebol como redenção: como é que vou reconhecer minha vida nesses estereótipos da pobreza nacional?".

Pois é, este é o milagre de "Linha de Passe": o filme é sobre "pessoas que nem a gente" porque nunca é "pitoresco". Como assim?

O "pitoresco" é uma prática estética que começou no século 18, na Inglaterra. Consistia em transformar paisagens potencialmente sinistras (por exemplo, as ruínas, caras aos primeiros românticos) em pinturas "graciosas", que pudessem ser penduradas em cima da lareira. Logo, o mesmo aconteceu com miseráveis e mendigos: inventou-se um jeito de pintá-los de tal maneira que, enternecedores ou monstruosos, mas sempre "recreativos", pudessem adornar as habitações de nobres e burgueses. Esses novos enfeites eram um bálsamo para a consciência: "Sou do bem, tenho um mendigo na sala". Para obter o efeito pitoresco, não se trata de amenizar a diferença do sujeito representado. Ao contrário, é melhor exagerar essa diferença, de forma que a miséria, a deformidade, a abjeção, por parecerem tão distantes, sejam "divertidas", e não tocantes: o grotesco é um tipo de pitoresco.

O pitoresco, em suma, aproxima falsamente, garantindo que o outro pintado permanecerá outro: uma vinheta caricata. O debate sobre a "estetização" da miséria no cinema brasileiro é, aliás, a continuação da antiga discussão contra ou a favor do "pitoresco".

Voltemos a "Linha de Passe". Suas personagens vivem numa São Paulo especialmente sóbria, muito diferente daquelas belezas naturais do Brasil que, vistas da janela afavelada ou do casebre, podem tornar pitoresca qualquer miséria.

O roteiro escolhe uma família pobre e sem pai, mas não indigente nem desunida. Também por isso, talvez, nos altos e baixos, nas brigas, nas alegrias, nos fracassos e nas incertezas morais dos protagonistas, a pobreza seja, por assim dizer, acidental: suas vidas nos tocam não pela condição social, mas por serem vidas de nossos semelhantes.

Chama-se linha de passe uma roda em que os jogadores devem passar a bola entre si sem que ela toque no chão. É uma versão do "ninguém se salva sozinho": se a peteca cai, todos perdem -é preciso jogar não contra, mas com e para os outros. E saí do filme pensando que a linha de passe não era só entre os irmãos da Cidade Líder. Há uma linha de passe que nos inclui.

Originalmente, o filme seria o primeiro de dois, filmados na seqüência. No segundo, as personagens centrais seriam as figuras de classe média que atravessam marginalmente, por um instante, a vida dos protagonistas do primeiro longa. De fato, o conjunto de filmes teria sido um marco.

Numa cena de "Linha de Passe", um dos irmãos, que desliza para o crime, acaba seqüestrando um motorista em cujo carro ele trombou ao fugir da polícia. Na cena, tensa e dramática, o jovem pede à sua vítima que olhe para ele, para ser visto. Como observou, num e-mail, um leitor e espectador do filme, Tomas Rosenfeld, o jovem tampouco percebe sua vítima (ele agride, aliás, quem o ajudou a se levantar).

O motoqueiro que se apresta a quebrar o vidro de um carro enxerga apenas uma bolsa, não o motorista -assim como o motorista no farol, ao ver surgir uma moto de seu lado, enxerga apenas a ameaça. A invisibilidade é uma via de duas mãos: insulfilm nos vidros dos carros e nas viseiras dos capacetes.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ciúme



Pesquisa oferece duas sugestões para que uma relação não seja envenenada pelo ciúme

A CADA semana, ouço a queixa de alguém que encontra, no celular de seu parceiro ou parceira, a "prova" de uma traição: o ciúme vinga com a tecnologia, mas entendê-lo continua difícil.

Para os darwinistas, a evolução favoreceu os ciumentos: sobrevive a linhagem dos que evitam sustentar rebentos ilegítimos, poupando assim seus recursos. Problema: o argumento evolucionista vale só para o ciúme masculino (mesmo no pleistoceno, os homens que pulavam a cerca não voltavam grávidos para casa), e, restaria explicar, o ciúme feminino. Várias pesquisas mostram que todos, homens e mulheres, são mais sensíveis à infidelidade emocional (que não engravida ninguém) do que à infidelidade sexual.

Os cognitivistas, em geral, entendem o ciúme como uma reação contra algo que ameaça a relação e fere o amor-próprio do "traído". Faz sentido, mas o ciúme (sobretudo patológico) nem sempre é reativo: às vezes, o ciumento inventa situações para alimentar seu ciúme.

Os terapeutas psicodinâmicos notam que o ciumento é mais preocupado consigo e com seus rivais do que com o objeto de seu amor. Eles reconhecem, grosso modo, dois tipos de ciúme, que ambos seriam restos neuróticos da infância:

1) Há o ciúme possessivo de quem não deixa a primeira infância, continua querendo ser um único corpo, junto com a mãe, e só enxerga ameaças - no pai, nos irmãos etc. Nesse estilo, uma tia minha passou a vida recluída pelo marido: não saía de casa, nenhum médico podia examiná-la. Por essa razão, eu não a conheci, mas minha avó dizia que o homem era louco e que ela era louca também, por aceitar.

2) Há o ciúme inseguro de quem nunca se sente "tranqüilamente" amável e está sempre revivendo as emoções da pré-puberdade, quando descobrimos que a mãe tem interesses diferentes da gente (experiência dolorosa, mas também prazerosa, pois, traindo-nos, ela nos liberta para desejarmos outras coisas).

Então? Pois é, acabo de ler uma pesquisa, de Visser e McDonald, no "British Journal of Social Psychology" (vol. 46, nº 2, junho 2007): "Swings and Roundabouts: Management of Jealousy in Heterosexual Swinging Couples" (suingue e carrosséis: administração do ciúme em casais heterossexuais que praticam o suingue).

Questão dos pesquisadores: há casais que praticam regularmente o suingue, a troca sexual de parceiros; como eles administram o ciúme?

Resultado previsível: os casais que praticam suingue transformam seu ciúme em excitação sexual. Essa transformação é mais fácil para o homem; na mulher, a visão do parceiro nos braços de outra produz facilmente insegurança. Seja como for, a transformação do ciúme em excitação sexual é possível à condição que seja garantida a confiança absoluta de ambos na coesão do casal. Garantida como?

1) A primazia do envolvimento afetivo sobre o sexual é permitida pela sinceridade. O parceiro é sempre o primeiro a saber: essa prioridade garante a superioridade do laço afetivo do casal sobre o laço sexual com outros. De fato, na infidelidade, o que mais causa aflição é que, por exemplo, o amante sabe do marido, e o marido não sabe do amante (diga para um amante que sua performance é comentada na mesa do casal, e ele, provavelmente, sumirá para sempre).

2) O próprio suingue, como fantasia constantemente elaborada pelos dois, consolida o laço do casal, torna-o muito mais importante do que os parceiros ocasionais de cada um.

Será que, dessas constatações, há como deduzir uma receita contra o ciúme ordinário?

Parece que sim: à condição de não precisar repetir os restos da infância mencionados antes, deve ser possível construir uma relação em que o ciúme seja tolerável. Para isso, segundo a pesquisa, é bom: 1) que as "infidelidades" (todas, não só as sexuais) sejam prenunciadas, ou seja, que elas existam primeiro na conversa do casal; 2) que os membros do casal compartilhem uma aventura, um sonho (voar de asa delta, aprender sânscrito ou praticar suingue, tanto faz).

Mais duas observações. A maior traição é a traição do próprio desejo da gente; portanto, pedir ao outro para não nos trair é menos importante do que lhe pedir para não trair a si mesmo. Até porque um parceiro ou uma parceira que traísse seu próprio desejo para ficar com a gente acabaria, a médio prazo, odiando-nos por ter-se traído.

Enfim, uma infidelidade não é razão para acabar com uma relação. No máximo, é razão para perguntar-se se a relação vale a pena.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Olimpíada e diários de guerra


Zapeava entre notícias e esporte; a mestria dos atletas me consolava da desordem do mundo

A GUERRA na Geórgia começou durante os Jogos Olímpicos, que, em tese, deveriam ser um tempo de trégua. De fato, nenhum conflito parou durante as semanas de Pequim: Afeganistão, Iraque, Darfur... a lista é longa. Geralmente, a idéia da trégua olímpica é entendida assim: se é para os povos se enfrentarem, melhor que seja por atletas interpostos, como generais que resolvessem a batalha com um duelo entre si, poupando povos e exércitos. Nessa linha, imagino facilmente a emoção do lutador georgiano que ganhou uma medalha de ouro, mas não é isso que me toca no espetáculo da Olimpíada. Acho um pouco ridículo, aliás, o "ranking" das nações, assim como o grito dos comentadores: o ouro é "do Braaaaaaasil". O ouro, a prata, o bronze (e a simples presença na Olimpíada), para mim, são dos atletas -só deles. Não me sinto honrado por pertencer à nação que eles representariam. O que me comove é a gesta deles, não o hino nacional que toca quando sobem no pódio. Nas noites olímpicas, eu não parava de zapear entre os canais de notícias (guerra, tensão, eleições americana e brasileira) e os canais de esporte. Aparentemente, meu prazer estava no ato de zapear. Por quê? A performance dos atletas é um exercício de clareza e de controle de si. Certo, para a maioria, o caminho até lá é uma gincana de sacrifícios, conflitos familiares, dramas íntimos e buscas de patrocínio. Mas, no momento do salto, do saque, da evolução, da corrida ou da luta, o mundo se simplifica até reduzir-se àquele instante em que tudo vai depender do próprio atleta (enfim, quase tudo: veja-se o sumiço da vara de Fabiana Murer). É o contrário do que acontece no noticiário, do qual entendemos o que podemos (menos do que gostaríamos), mas isto constatamos: o que acontece pelo mundo afora nos escapa e nos atropela. Mentiras, interesses confessos ou inconfessáveis, paixões coletivas insensatas, bolsas e mercados que sobem ou descem: nossa vida coletiva, do bairro até a ONU, parece sempre fora de nosso alcance. A invenção democrática não melhorou a situação: a vontade dos déspotas foi substituída por forças tão brutais quanto, só que mais complexas e misteriosas. Pois bem, zapeando entre a Olimpíada e o noticiário, era como se a mestria dos atletas me oferecesse uma pequena trégua na desordem do mundo. Contemplar os atletas me dava um prazer parecido com aquele que encontro lendo a história de "Tom Jones" (de Henry Fielding) ou de Fabrizio na "Cartuxa de Parma" (de Stendhal): há indivíduos que conseguem inventar sua vida, embora atropelados pelo barulho, pela fúria e pelo pouco sentido da História com H maiúsculo. Justamente, acabo de ler "Vozes Roubadas" (Companhia das Letras): é uma antologia de diários de guerra escritos por crianças, desde o começo do século 20 até hoje. As curadoras são Melanie Challenger e Zlata Filipovic, cujo "Diário de Zlata" (redigido entre os 11 e os 13 anos) foi, para a família Filipovic, nos anos 90, o passaporte para sair do inferno de Sarajevo. Comecei a leitura com desconfiança, pois não acredito muito na oposição entre "inocência" infantil e horror do mundo adulto. Mas o efeito da leitura foi outro: os diários das crianças revelam quanto nós mesmos somos perdidos na História. O livro começa com o diário da menina alemã Piete, que escreve durante a Primeira Guerra Mundial. Do entusiasmo patriótico à descoberta da injustiça e do horror, Piete é sacudida pelos eventos exatamente como os adultos ao redor dela: suas anotações são comovedoras não tanto pela ternura que nos inspira o destino de uma menina em tempos sombrios, mas porque Piete nos lembra que 1) somos todos crianças no meio de tempestades quase incompreensíveis e incontroláveis; 2) mesmo na tempestade, é possível preservar a dignidade e a grandeza da vida -por exemplo, reconhecendo que ela vale a pena ser contada num diário. Meu filho Max está nos EUA e gosta de escrever perfis de personagens esmagados pela História do mundo. Ele me falou sobre um menino que pede esmola nas ruas de Nova York com o cartaz: "Like Obama, I want change" -ou seja, aos ouvidos americanos: como Obama, "quero mudança", mas também "quero um trocado". Pois é, "Vozes Roubadas" fala disto, do trocado (é pouco, mas é alguma coisa) com o qual ficamos, crianças e adultos, nas nossas vãs tentativas de sermos parte da História.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

César, Diego e nós



O desejo da gente não é definido, fixo. Ele não precisa ser "descoberto", mas inventado

AS LÁGRIMAS de felicidade de César Cielo me comoveram. Também me comoveu a consternação de Diego Hypólito depois da queda que o privou da medalha olímpica.

Anos de dedicação e controle de si acabaram, para César, num momento em que ele nadou como nunca e, para Diego, num erro inesperado. César tinha dificuldade em acreditar que seu sonho estava acontecendo. Diego repetia: "Não acredito que perdi".

Com um amigo, domingo à noite, conversamos sobre o que faz o estofo dos campeões.
Evocamos aquela idéia da sabedoria popular que faz sucesso na literatura de auto-ajuda (por exemplo, "O Segredo", livro e filme) e que diz o seguinte: descobrir o que a gente deseja e desejá-lo ardentemente é bom e eficiente, pois quem deseja muito, mais cedo ou mais tarde, realiza suas aspirações.

Na mesma veia, organizar nossa existência ao redor da ocupação da qual a gente mais gosta parece ser o jeito de matar a charada da vida.

"Logicamente", com a paixão pelo ofício de cada dia ("adeus depressão"), serão multiplicadas as chances de sucesso (merecido, pois, no caso, só poderemos nos entregar a nossas tarefas com o maior afinco e com prazer).

É fácil entender de onde vem essa idéia. Você passa o dia aflito, correndo atrás das complicações de seu trabalho e de seus deveres e, quando, à noite, coloca em ordem sua coleção de selos, pensa em desistir de tudo e abrir uma lojinha filatélica.

Movido por sua paixão, quem sabe você escreva, enfim, o novo catálogo definitivo dos selos da Colônia, do Império e da República do Brasil; logo, a lojinha crescerá até se tornar o grande centro on-line de troca, comércio e avaliação de selos nacionais.

Mas há um problema: essa idéia é ingênua. Não tanto por ela subestimar as dificuldades eventuais de sua lojinha filatélica, mas por duas razões fundamentais:

1) O desejo da gente não é um desejo definido, que seria "o nosso" (como uma espécie de DNA psíquico) e que se trataria de descobrir e logo seguir à risca. O episódio bíblico do pecado original é uma boa metáfora da condição humana. Todas as necessidades estavam satisfeitas no Paraíso terrestre, e fomos querer um fruto que não sabíamos direito o que era: a humanidade (pecadora, claro) surge quando começamos a desejar além do que satisfaz nossa necessidade de sobrevivência. Como nosso desejo não é regrado pela necessidade, ele é variável, não depende do valor intrínseco dos frutos desejados, nem da singularidade de nosso paladar, mas de nossos vínculos com os outros: no caso, com as Evas que nos seduzem ou com a vontade de transgredir a ordem divina. Conclusão: nosso desejo é o fruto volúvel das ocasiões, das circunstâncias e, sobretudo, das relações com nossos semelhantes; ele é uma disposição que INVENTAMOS -não que DESCOBRIMOS.

2) Inventar um desejo não é nenhuma garantia de talento. É possível desejar ser nadador, ginasta ou filatélico sem ter talento para nenhuma dessas atividades. Em tese, isso não teria que ser um drama, visto que poderíamos procurar (ou melhor, inventar) outro "fruto" desejável, mais compatível com nossas aptidões. Mas não funciona assim. Na parábola bíblica, o nosso gosto pelos frutos proibidos indica que, em geral, preferimos desejar o que está fora de nosso alcance, por ser objeto de interdito ou, justamente, por ser irrealizável à vista de nossas modestas habilidades. Ou seja, em vez de desejar de galho em galho segundo as ocasiões e conforme nossas aptidões, preferimos almejar o impossível. O aspirante filatélico sofre de uma sudorese que estragaria qualquer selo; o aspirante literato não gosta de ler, e por aí vai: gostamos de visualizar futuros que nunca chegarão.

Pois bem, os campeões, ao menos durante um tempo de sua vida, focam seu desejo, ou seja, persistem em desejar apenas uma coisa. Até aqui eles são parecidos com a gente.

Só que, diferentes da gente, eles se autorizam a desejar uma coisa que é difícil, mas que não lhes é impossível: desejam a excelência num ofício para o qual eles têm talento. Restaria se perguntar por que um campeão pode falhar. Pois bem, até os campeões precisam daquela coisa que faz com que, um dia, milagrosamente, a disposição, o humor, a temperatura, o brilho do sol ou o barulho da chuva conspirem para que tudo dê certo. Ou seja, precisam de sorte. Boa sorte a Diego nos próximos Jogos Olímpicos.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Sexo "artístico"



No cinema, o sexo é um bailado de corpos que se exercitam, com luz e música apropriadas

COM FREQÜÊNCIA (crescente?), o sexo, no cinema, consiste em cenas intermináveis nas quais fragmentos de corpos, enquadrados de maneira que não se sabe mais se são nádegas ou seios, movimentam-se numa luz suave e com uma trilha sonora que é uma espécie de Galvão Bueno da "transa" -só que mais previsível que o apresentador global.

Talvez se trate de um efeito da censura ou da autocensura: o disfarce "artístico" vale como pretexto para que a gente se autorize a mostrar coisas que, sem isso, pareceriam proibidas.
O fato é que, em geral, esse sexo "artístico" me causa um mal-estar.

De repente, passo a contemplar (no escuro) a ponta de meu sapato, como um adolescente que estivesse na companhia dos pais. Mas não é por pudor infantil: no cinema, uma cena de sexo que seja pornográfica ou simplesmente realista não me causa mal-estar algum, e, quer eu goste ou não, sigo olhando para a tela.

De onde vem, então, minha dificuldade com o sexo "artístico"?

Uma amiga gostava de um homem bonito e "sarado". Quando se deitaram juntos pela primeira vez, havia um grande espelho ao lado da cama.

No meio das escaramuças, o homem olhava insistentemente para o espelho. Minha amiga pensou que ele devia achar excitante a visão dos dois corpos nos gestos do amor, mas logo ela notou que o homem não parava de flexionar seus tríceps verificando, no espelho, a definição de seus músculos. Minha amiga perdeu o entusiasmo; esperou, educadamente, que a transa acabasse e nunca mais encontrou o homem.

"O que foi?", perguntei, "você ficou com ciúmes dos olhares apaixonados que ele reservava para seu próprio corpo?". "Não", respondeu minha amiga, "só fiquei com a sensação de que a gente estava na academia. E aí perdi o embalo".

Pois bem, no cinema, as representações "artísticas" do sexo me fazem um efeito parecido: é como se o descontrole do corpo erótico (que, claro, concordo, pode ser obsceno) fosse substituído quer seja por um bailado de corpos higienistas que se exercitam, quer seja por uma câmara lenta de músculos e pele, que parece ambicionar o estatuto de obra de arte abstrata.

Em suma, no estereótipo cinematográfico, o sexo parece mais estético, saudável e pretensamente poético do que extático.

Ora, o sexo não é nada disso, e torná-lo "artístico" não é apenas um jeito de representá-lo, é também um jeito de domesticá-lo, de regrá-lo.

Acaba de ser publicado em português mais um seminário de Michel Foucault, o de 1978-79, "Nascimento da Biopolítica" (Martins Fontes).

Talvez seja a única ocasião em que Foucault analisou diretamente o poder do Estado no mundo contemporâneo. Como sempre, Foucault é genial: ele aponta o ideal do Estado contemporâneo na "frugalidade" (ou seja, no menor governo possível), enquanto o exercício do poder é delegado a mecanismos que triunfam por seu caráter aparentemente natural e incontestável. Exemplo fundamental: o Mercado, que, sem intervenções externas, produziria os preços e os custos "verdadeiros" -só pelo livre jogo dos agentes econômicos. Em outras palavras, no exercício do poder moderno, não é preciso mandar: basta mostrar a "naturalidade" do óbvio.

O seminário termina antes que Foucault consiga tratar propriamente do poder na gestão da vida cotidiana, mas entende-se que ele funciona da mesma forma, graças a reguladores implícitos, que se impõem por sua suposta e "óbvia" naturalidade. Por exemplo, quem negará que a vida saudável, a harmonia e a higiênica limpeza são valores "naturalmente" benéficos?

Então por que seríamos reféns da "feiúra" da concupiscência, quando é possível (como sugerem as cenas artístico-eróticas do cinema) viver orgasmos lindos e simultâneos, quem sabe ritmados pelo coro da "Nona Sinfonia" de Beethoven?

Sem contar que, com luz e música certas, também parece óbvio que o sexo possa espontânea e naturalmente conviver com o amor. Não é?

P.S. A vantagem do teatro sobre o cinema é que, no teatro, a estetização sanitarista do sexo é mais difícil, pela presença física do corpo dos atores e pela falta de enquadramentos parciais. Como contraponto ao sexo "artístico", freqüente no cinema, quem estiver em São Paulo ou passar por aqui pode assistir a uma peça: "Pornografia Barata", de Mauricio Peroni de Castro, em cena no Espaço dos Satyros (às 21h nas sextas e sábados até o fim de agosto, depois disso à meia-noite).