quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Segurança ou liberdade?




As proibições protegem nossa segurança; mas qual liberdade é certo sacrificar para sermos mais seguros?



PASSEI A SEMANA em Nova York e devorei "Só Garotos" (Companhia das Letras), o livro em que Patti Smith, poetisa, artista e roqueira, conta a história de seu amor por Robert Mapplethorpe, desde o encontro dos dois no parque de Tompkins Square, em 1967, até a morte do artista e fotógrafo, 20 anos depois, de Aids.
A leitura conjurou fantasmas de meu passado: como Smith e Mapplethorpe, fui jovem no fim dos anos 60 -e um tempo em Nova York. Vestindo jeans pata-de-elefante e uma jaqueta militar surrada, errei do Brooklyn ao Lower East Side de Manhattan, frequentei o parque de diversões de Coney Island e os inferninhos da rua 42 ao redor de Times Square.

Talvez Smith amenize um pouco os fatos, para proteger a imagem de Mapplethorpe, ou talvez minhas extravagâncias passadas pareçam maiores do que foram (sempre idealizamos nossa rebeldia). Seja como for, lendo o livro, achei que minha turma era, no mínimo, tão louca quanto Mapplethorpe e Smith.


Não penso na promiscuidade sexual ou nas "experimentações" com tóxicos ilícitos. A verdadeira loucura de todos estava na intransigência da liberdade. Smith, numa época em que a fome era violenta, para não desistir (e voltar para a casa dos pais), repetia o mantra "Eu sou livre, eu sou livre".


Essa liberdade corajosamente defendida não se confundia com a preguiça de uma vida à toa. Smith e Mapplethorpe queriam se afirmar como artistas, únicos, diferentes.


Se não se confundiam com os demais, não era por eles não serem devorados por um sonho de sucesso. Ao contrário, suas ambições eram tamanhas que eles estavam dispostos a lhes sacrificar todo conforto e segurança. Nisto eram diferentes: não havia preocupação com conforto e segurança que pudesse induzi-los a moderar a liberdade de seus sonhos.


Todos nós fumávamos como se o tabaco fosse um vegetal em extinção (será mesmo que não sabíamos que era nocivo?). Transávamos sem camisinha e ao deus-dará (tudo bem, não havia Aids, mas havia gonorreia, sífilis, chatos e maníacos sanguinários). Dirigíamos com o pé na tábua (não havia limites de velocidade, mas sabíamos como tinham morrido James Dean e Albert Camus). Cuidado, não havia nada de suicida nessas atitudes: ao contrário, viver nos importava muito -sobreviver, muito pouco.


Em Nova York, mexi em pertences e documentos de meu filho -claro, a pedido dele. Aprendi assim que, nos anos em que morou em Nova York, apesar de minha oposição furiosa, ele tinha uma motocicleta. Passei da irritação ao riso: justamente em 1967, em Ibiza, num estado mental nada indicado para pilotar, eu aluguei uma moto e abracei uma árvore a 60 por hora -sem capacete.


Imediatamente, de Nova York, postei no meu Twitter (@ccalligaris): Sem dúvida, as proibições podem aumentar nossa segurança. Mas que liberdades seria correto sacrificar para sermos mais seguros?

Alguns lembraram uma frase de Benjamin Franklin: os que renunciassem à liberdade essencial para comprar um pouco de segurança temporária não mereceriam nem a liberdade nem a segurança.

1) As liberdades "inessenciais" são apenas aquelas às quais já renunciamos, covardemente. 2) Há 20 ou 30 anos, estamos no meio de uma negociata, da qual sairemos com alguma segurança e liberdade nenhuma. Não vou exemplificar: só faça a lista das atividades que, 30 anos atrás ou menos, não eram sequer regulamentadas.


Na luta entre segurança e liberdade, a liberdade está sempre em desvantagem, pois, assim que começarmos a prezar a segurança, como correremos algum risco para defender nossa liberdade?


Alguém observará que os "garotos" sempre vivem como se não houvesse amanhã. Concordo, mas não acho que seja apenas porque, em tese, eles estão ainda longe da morte.


Há uma outra razão. 1) Em geral, a juventude é o tempo durante o qual mais acreditamos num sentido da vida; 2) o que dá sentido à vida também dá sentido à morte: sempre vale a pena arriscar a pele por uma ideia ou esperança que pareça justificar a existência (no caso de Mapplethorpe, vale a pena sacrificar-se pela arte); 3) inversamente, quando não acreditamos num sentido, estamos muito preocupados com nossa segurança, pois este é o paradoxo: QUANTO MENOS sentido a vida tem, TANTO MAIS valorizamos (mesquinhamente) o simples fato de sobreviver.



quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A autoridade que espero




Para o paternalismo, as autoridades podem mandar na gente porque nos amam como um pai ou uma mãe



"O QUE ESPERAMOS", em português, é uma expressão complexa: pode significar o que gostaríamos que acontecesse (é o sentido do francês "espérer" e do inglês "to hope") ou apenas o que antecipamos (é o sentido do francês "s'attendre à" e do inglês "to expect").
Na semana retrasada, uma reportagem da revista "Veja" me perguntou o que eu esperava dos primeiros cem dias do governo Dilma. Respondi: "Espero ser tratado como gente grande. (...) Espero que a presidente não ache que é meu pai nem a minha mãe".

Minha resposta respeitou o duplo sentido de esperar: escolhi algo que desejo e também antevejo que possa acontecer no governo Dilma.


Na presidência Lula (que foi, ao meu ver, uma grande Presidência para o país), a única coisa que realmente me ouriçou foi o paternalismo. Disso não vou sentir falta. E ninguém deveria -pois, no balanço positivo dos oito anos, acredito que quase todas as manchas tenham sua origem no paternalismo.


O paternalismo explica a escolha de colaboradores mais por vínculos afetivos do que por competência ou probidade e explica, em geral, a dificuldade em reconhecer que a lei se situa acima dos laços de amizade e de família (veja-se o caso final dos passaportes diplomáticos concedidos aos filhos de Lula).

Por que o paternalismo me incomoda tanto?

Tive pai e mãe ótimos e, ainda hoje, às vezes, gostaria que estivessem aqui para me orientar. Mas não deixo ninguém se colocar no lugar deles. Isso não me exige um esforço grande, pois o lugar da minha mente que eles ocupavam antes que eu alcançasse minha (relativa) autonomia já não existe mais, há tempos.


Desfazer-me desse lugar não foi automático; em grande parte, foi o resultado do processo de minha análise. Uma psicanálise, aliás, poderia se definir como o esforço para se desfazer de figuras paternas internalizadas, que tiveram uma função no atrapalhado caminho pelo qual nos tornamos adultos, mas das quais não precisamos mais.


O paternalismo é o avesso desse esforço: ele quer que a experiência adulta da autoridade seja moldada pela nossa neurose familiar básica.


O paternalismo acha bom que, para nós, toda figura de autoridade se pareça com uma mamãe ou um papai, cuidadosos e/ou severos. Também o paternalismo acha bom que, do agente de trânsito ao presidente, do professor à enfermeira, as figuras de autoridade pensem que elas podem mandar na gente porque nos amam como os pais amam seus filhos.


A neurose faz com que, na vida adulta, nós tendamos a viver todas as relações como extensões dos afetos familiares no meio dos quais crescemos. No caso que nos interessa, estaríamos prontos a sermos bons meninos diante de um governante que nos convença de que ele é nosso pai ou nossa mãe (o que não vai ser difícil, pois isso é exatamente o que queremos acreditar).


Minha esperança é que, com Dilma, o governo não se prevaleça dessa neurose quase universal. Espero, por exemplo, que a presidente me peça para pagar mais impostos porque a boa administração do país exige esse esforço -não porque ela é uma mãe para mim, e, portanto, eu me comportarei bem.


Por que espero isso? Simples: a autoridade que se funda num vínculo afetivo é descontrolada e incontrolável. Quem ousaria discutir e limitar a suposta intenção amorosa dos "pais"? Como o "filho" ousaria inquirir o pai e a mãe? O paternalismo é quase sempre tentado pelo autoritarismo mais arbitrário. Por seu trajeto, espero que Dilma tenha pouca simpatia pelo autoritarismo sob todas suas formas.


Alguém, tendo lido minha resposta à "Veja", perguntou: mas não é normal que a relação com o pai e a mãe seja para nós o modelo de toda relação com a autoridade? Não é isso que a psicanálise nos diz?


Não é. A família é o sistema que inventamos para lidar com as crianças estranhamente prematuras que todos somos -crianças que precisam de cuidados e orientação durante um quinto de suas vidas. Pensar que a família, por ser o quadro em que descobrimos a autoridade, seja também seu modelo "natural" equivaleria a pensar que toda sexualidade, por ter começado com papai e mamãe, deva ser edípica, para sempre.


A psicanálise pensa (e espera) o contrário, ou seja, que a gente cresça e, no caso, que nossa (inevitável) relação com a autoridade deixe de ser parasitada pelos restos da neurose familiar.


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1301201125.htm

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Troca de ano e de Presidente


Gosto de Dilma porque ela se mostrou disposta a sacrificar seu corpo natural para o bem do político


1) RÉVEILLON
Ao longo da costa da Liguria, na Itália, entre Monterosso a Riomaggiore, sucedem-se cinco pequenas cidades (incluindo as duas que mencionei), ditas as Cinque Terre (cinco terras). É possível visitá-las todas, em seis horas, pelo "sendeiro azul", uma trilha que eu já achava grandiosa e emocionante quando, moleque, saía de Rapallo de trem para Riomaggiore e voltava a pé até Monterosso.

O caminho corre no encosto da montanha: de um lado a rocha, do outro, uma queda abrupta para um mar especialmente azul por ser imediatamente profundo.

O que me emocionava era a própria existência das aglomerações, num lugar tão improvável (migre.me/3oPbE).

Pois bem, passei a noite do Réveillon em São Conrado, Rio de Janeiro, enxergando, ao leste, os fogos que o Hotel Intercontinental ofereceu a seus hóspedes e, ao oeste, a favela da Rocinha.
Parece que, neste fim de 2010, os fogos da Rocinha foram mais alegres do que nunca. Graças à Presidência de Lula, talvez a população da Rocinha tenha acabado o ano com alguma sobra, que deu para investir na festa do Réveillon.

O fato é que, na comparação, os fogos da Rocinha ganhavam dos do Intercontinental, não pela quantidade ou pela variedade de formas e cores, mas pelo cenário que iluminavam. A cada rosa de luz que explodia no céu, eu via uma vinheta da persistência, da obstinação da vida humana, subindo e se segurando pelo morro.
Senti a mesma admiração comovida que sentia nas caminhadas de Riomaggiore a Monterosso.

Em suma, festejei a chegada do novo ano lembrando-me do seguinte: o que mais aprecio na nossa espécie é sua incrível resiliência -nossa capacidade de continuar existindo com e contra a natureza e com e contra os horrores que nós mesmos não nos cansamos de inventar.
Bem vindos a 2011. Incrível, gente: duramos até aqui!

2) Dilma Presidente
Uma leitora, Sofia Segalla, pergunta: "Uma mulher que luta pelo direito de ser protagonista de uma transformação histórica (...) o que essa mulher pode esperar perder? Do que ela está abrindo mão?". Sofia gostaria que eu "falasse a respeito das perdas das mulheres que assumem grandes posições políticas".
Aqui vai, e vou me servir de um clássico insubstituível, "Os Dois Corpos do Rei", de E. Kantorowicz (Companhia das Letras).

Qualquer indivíduo, ao se tornar governante, adquire um "corpo político" e sacrifica (deveria sacrificar), total ou parcialmente, seu "corpo natural". Ou seja, no caso do governante, o corpo oficial (o que desfila na praça e também o que, supostamente, à noite, está sempre debruçado sobre as necessidades da nação) torna-se mais relevante do que o próprio corpo natural, que ama, sofre e goza.

Em março/abril 1985, o corpo político de Tancredo se manteve vivo para salvar a democracia brasileira, enquanto seu corpo natural já estava morto ou quase. Ou, então, o corpo natural do presidente Roosevelt era confinado numa cadeira de rodas pela poliomielite; seu corpo político se ergueu sobre suas próprias pernas nas horas em que a história da nação o exigia.

Desde os anos 1960, paira no ar a ideia de que o governante que se importasse com o seu corpo natural seria mais humano e mais próximo da gente. Certo, mas será que, por isso, ele seria melhor governante? Duvido.

Em regra, no Brasil "cordial", as razões privadas invadem o espaço público; com isso, o corpo natural do político não sai de cena e continua gozando obscenamente de privilégios indevidos, do nepotismo, da corrupção e, naturalmente, da nossa cara.

E Dilma com isso? Pois bem, gosto de Dilma porque, até aqui, ela se mostrou disposta a sacrificar seu corpo natural para o bem do corpo político. Entendo o fato de ela ter desafiado a doença para continuar candidata como o gesto de quem considera que a função pública está acima de sua saúde e de sua vida.

Gosto também da reputação de "braba" de Dilma: no papo cordial dominante, quem leva sua tarefa a sério é considerado muito brabo.

Nota: infelizmente, não acredito que esse elogio a Dilma possa se estender a seus aliados, nem a todos seus ministros.

Respondendo a Sofia: Dilma, por governar o Brasil, perderá (já perdeu) sua relação com o cotidiano da vida, do amor e da amizade. É uma pena; mas sejamos egoístas: se ela for mesmo uma governante capaz de colocar sua função acima de sua vida concreta, sorte nossa.